ELY VIEITEZ LISBOA

A segunda opção

Por: Ely VIeitez Lisboa | Categoria: Cultura | 12-10-2019 04:20 | 2019
Foto: Reprodução

Célia casou-se às pressas, para chegar antes da cegonha, a barriga de seis meses já aparecendo. Fez questão de ir vestida de branco, véu e flor de laranjeira ornando a testa, só para ter o gostinho de noiva virgem.

Foi morar com João, em uma casinha simples, quarto, sala e cozinha; na frente tinha um pequeno jardim de margaridas alegres e regateiras, com seus olhos cor de ouro, no centro entre a brancura das pétalas.

Ela se sentia quase feliz, com a alma apaziguada, mas os filhos foram vindo, em quantidade exagerada, sem planejamento: sete, o oitavo na barriga. Vieram as dificuldades, o dinheiro cada vez mais curto, mal dando para a comida para aquele bando de formigas.

Célia começou a ficar desacorçoada. A faina do dia a dia, as noites descendo e nada melhorava. Pelo contrário, piorava. O marido nem para a cama servia mais. Ele a procurava de longe em longe. Faziam um sexo mecânico, sem o menor entusiasmo. Uma obrigação.

Às vezes ela parava, no quarto, diante do velho espelho   trincado de uma banda. Olhava-se. Até para quem pariu sete filhos e ia para oito, ela ainda tinha certa beleza, as pernas grossas, os seios mais volumosos pela gravidez. E os cabelos: longos, lisos, negros; ela sempre os trazia presos, em um coque.

A criança nasceu. Outra fêmea. O descontentamento de Célia aumentou. Começou a desleixar a casa, às vezes atrasava a comida, ignorando o berreiro dos filhos menores.

Um dia, vindo do armazém do seo Zé, passou por alguns homens que lhe fizeram um galanteio. Célia gostou muito. Talvez até demais.

Foi a partir daquele momento, que o plano foi surgindo em sua cabeça, virando quase uma obsessão. Fugir. Ir para a zona, virar mulher da vida. Fantasiava. Muitos homens bonitos pagando para dormir com ela. Maria gostava de sexo. O marido sempre chegando cansado, fedendo suor, às vezes nem tomava banho e caia na cama, dormindo logo.

Seu plano foi crescendo em detalhes. A zona da cidade vizinha era famosa.  Diziam que havia mulheres bonitas e um grande movimento. Sim, era para lá que ela iria. Pegaria carona em algum caminhão, levaria pouca roupa, quase nada. Também só tinha uns trapos velhos.

Dali umas noites, quando todos dormiam, ela saiu silenciosa como uma gata. Pegou o primeiro caminhão que passou e foi para a cidade próxima, atrás de seu sonho.

Não se decepcionou. Chegou, conversou com um homem que disseram ser o patrão, pediu emprego. Ele a examinou inteira, os olhos lambendo-lhe o corpo. Mostrou um quartinho lá no fundo, que ela devia dividir com mais duas companheiras.

À noite já recebeu seu primeiro freguês. Ele era meio velho e a custo deu conta de terminar, resfolgando em cima dela, como um animal. E depois, vieram os outros, muitos outros...

Um ano se passou. A realidade não era bem como ela imaginara. Havia homens que queriam fazer porcarias, coisas nojentas. Com o tempo, a duras penas, Célia descobriu várias coisas: há uma enorme distância entre o sonho e seus planos. A vida era pior do que imaginara.

Após três anos de casa, ela sentiu saudade do sexo manso e decente, com João. Começou a pensar muito nas crianças, chegou até a sentir os cheiros bons da sua cozinha, dos quartos. Apertou-lhe o coração a pensar no canteiro de margaridas que plantou diante da casa.

Nunca mais soube de João, nem de seus filhos. Vieram  algumas boas lembranças. Triste, infeliz, ela descobriu que a vida permite, no máximo duas escolhas e olhe lá, sem atestado de garantia. Em cada porta aberta, as consequências, pela escolha, sem documento de caução e quase sempre se revogam as disposições em contrário.

Teve umas doenças venéreas, precisou ir ao Posto de Saúde tomar remédios. Sarou, mas emagreceu muito. Os seios ficaram meio caído, os cabelos perderam o brilho.

E se ela procurasse saber onde moravam João e as crianças? Pode ser que ainda precisassem dela... Mãe é mãe. Resolveu tentar uma segunda chance. Perguntou, procurou saber e descobriu que João continuava morando no mesmo lugar. Agora ele era motorista de caminhão, em uma Firma grande.

A esperança começou a voejar ao redor de seu coração, como mosca teimosa. Uma madrugada pegou sua roupa, fez uma mochila e saiu sorrateira, rumo à sua casa.

Um sol morno clareava a porta, as janelas, escorria para o canteiro de margaridas, mal cuidado e cheio de grama, praga entre os caules frágeis das flores meio murchas.

Célia bateu na porta e um menino abriu. Ela olhou para ele, sem dizer palavra, entrou e foi para a cozinha, fazer café. O cheiro inundou o cômodo, João levantou e meio dormindo ainda, dirigiu-se para a cozinha. Viu a mulher perto do fogão, não pensou em nada, sentou-se.

Ela trouxe o bule fumegando e encheu o copo encardido sobre a mesa. O silêncio entre eles era um pacto. Clausula nova para a segunda chance.

(*) Ely Vieitez é escritora.
E-mail: elyvieitez@uol.com.br