ELY VIEITEZ LISBOA

Ode aos suicidas

Por: Ely VIeitez Lisboa | Categoria: Cultura | 11-11-2019 15:12 | 1869
Foto: Reprodução

A notícia trágica veio de manhã, pelo telefone. O amigo suicidara à noite. Encontraram-no morto.

O tempo pôs-se de luto, cinzento e triste. O sol não saiu, fez um frio de inverno úmido.

Pensei na sua mãe idosa, estupefata diante do acontecido. Não sabia o que fazer com o absurdo nas mãos vazias. Os filhos não deveriam morrer antes dos pais. É uma incoerência de Cronus, uma inversão inaceitável.

Aos poucos, um lodaçal de hipóteses surgiu, tentando entender o inexplicável. Situação financeira intrincada, possível surgimento de uma doença incurável, depressão profunda. Todas as possibilidades esbarravam na dúvida.

Quando a filha me abraçou, seus grandes olhos belos estavam vazios, estampando o abismo inesperado. O pai era alegre, risonho, parecia feliz. Parentes cruzavam a sala, resolvendo os problemas pendentes das partidas inesperadas: onde enterrá-lo, procura de papéis necessários para o féretro, padre ou pastor para encomendar o corpo.

A tristeza do momento, os rituais, as lágrimas, as orações, tudo me pareceu um déjà vu. Muitos anos antes, a situação era semelhante. A morte tem sempre a mesma face.

Lembrei-me também que, no passado, após a morte súbita e trágica do ente querido, fiquei com hábitos estranhos: eu falava com ele, enquanto guiava, como se ele ainda estivesse ao meu lado. Nas paredes, retratos seus, a sala sempre iluminada. Na cabeça, sua imagem ainda jovem de homem cheio de vigor.

Foi o amigo espiritualista que me orientou. Nada daquilo deveria ser feito. Aquele que partiu precisava de orações. Vontade de ensinar à jovem minha lição dolorosa. Inútil. Só se aprende vivendo. Pensei nos longos meses, até anos, que ela levará para superar a perda. Eu a senti irmã de infortúnio.

Depois me lembrei que um ano após a morte inesperada e voluntária da pessoa querida, escrevi um poema amargo: Ode aos Suicidas. Eu lera muitos livros sobre o fato. Psicólogos e psiquiatras chegavam a duas conclusões plausíveis: o suicida tem um limite mais curto para enfrentar o sofrimento, ou nasce suicida.

O poema começava com um questionamento: "São anjos por Deus chamados nossos suicidas / tirados da árdua luta por opção / de quem? Deles?". Não sei se por lirismo ou emoção, abrandei a dureza do ato, cheguei a chamá-los de sábios e afoitos, diante da lucidez áspera da existência humana.

Na realidade, tudo são dúvidas. Até hoje penso que nada de certo se pode afirmar do ato suicida. Covardia? Coragem? Desespero extremo? Total falta de esperança?

Um dia, uma mulher desconhecida abraçou-me, na rua, chorando: "Só você entendeu o que já aconteceu com nove pessoas de minha família!"... Senti-me impotente para argumentar que minha Ode era apenas um poema. Os grandes mistérios são sempre indevassáveis.

Até hoje leio minha Ode aos Suicidas e só parte do poema parece-me realista: "A vida não é convocação? / A morte, também, continuação insólita / cifrada, sem mapa, esboço estrada, / só armadilhas de caça e alçapões. / Julgar o desconhecido é o limite / de loucura maior. / Só se admite que eles foram / um pouco mais rápido que o pacto / se é que ele verdadeiramente existe, / cumprir o repetitivo credo / que todos terão que rezar. / Se nascemos para morrer / morremos todos os dias / matando de forma diversa / a vida, ilusões e sonhos, / só restando a precariedade / como saldo final maior".

(*) Ely Vieitez Lisboa é escritora.
E-mail: elyvieitez@uol.com.br