Na última sexta-feira, aconteceu a chamada Black Friday, data em que o comércio de produtos e serviços oferece grandes promoções. A data não é de origem brasileira, mas sim estadunidense e tem relações com um dos mais importantes feriados comemorados nos Estados Unidos: o dia de Ação de Graças, festejado sempre na quarta quinta-feira do mês de novembro. A Black Friday é, assim, a sexta-feira pós-feriado de Ação de Graças e marca o início das compras natalinas, principalmente porque por lá, uma conhecida loja de departamentos – a Macy’s – organiza anualmente, desde 1924, uma Parada de Ação de Graças, cuja principal função é dar início às celebrações e às compras de fim de ano.
No Brasil, a Black Friday aconteceu pela primeira vez em 28 de novembro 2010, quando ocorreu apenas on-line. De lá até hoje, a Black Friday só tem ganhado força, pois conforme a consultoria E-Bit, em 2014, a data gerou R$1,2 bilhão em vendas somente na internet, o que representa um volume considerável para o comércio. Mas este texto é de uma linguista e não de uma analista de mercado! Logo, a proposta é pensarmos sobre a origem do termo black friday, bem como refletir sobre os sentidos de tantos outros termos que circulam entre nós usando as palavras “preto” ou “negro” mesmo que esses sentidos não estejam assim tão evidentes.
A tradução da expressão black friday para nossa língua equivale à “sexta-feira preta” e, por ser assim, anualmente recebemos postagens que registram a origem do termo como referência a um dia em que senhores norte-americanos venderam escravos em liquidação, no ano de 1904. Essa alusão é falsa, até porque, em 1904, nos Estados Unidos, já havia sido abolida a escravidão. Por lá, os registros apontam que o primeiro uso do termo black friday aconteceu em 24 de setembro de 1869, seis anos depois da abolição da escravidão naquele país. Por isso, relacionar a data ao período da escravidão norte-americana não se sustenta.
Contudo, vamos aproveitar essa falsa associação para pensarmos acerca de outras associações que por aqui, entre nós, não têm nada de falsas. Pode ser que muita gente acredite na história acima porque, aqui no Brasil, foi costumeiro o uso das palavras “negro” e “preto” como adjetivos que desqualificam o substantivo a que se associam. Há também verbos depreciativos, justamente porque utilizam o radical daquelas palavras.
Expressões e termos como “denegrir”, “mercado negro”, “lista negra”, “lado negro”, “serviço de preto”, “alma branca” e muitas outras são reflexo de uma época bastante cruel e sombria de nossa história: o período da escravidão dos negros no Brasil. Tais vocábulos respondem aos sentidos que o período escravocrata construiu para a população que foi escravizada: os negros não foram respeitados como seres humanos, por isso eram desvalorizados e desmerecidos, além de qualificados por adjetivos de conotação bastante negativa.
Apesar do tom discriminatório dessas palavras, elas acabaram se naturalizando e, de tão legitimadas pelo cotidiano, ainda permanecem sendo usadas pela maioria de nós. O que não podemos de modo algum esquecer é que, lá no fundo, essas palavras guardam sim o sentido negativo, e até mesmo pejorativo, que se construiu para os negros, em nosso país, ao longo dos séculos.
Desse modo, expressões do tipo “mercado negro” repercutem entre nós aqueles sentidos de outrora; por isso, entendemos que essas não só legitimam como também reforçam preconceitos. Se hoje nossa sociedade busca tornar-se menos preconceituosa, por meio principalmente do combate à discriminação motivada pela cor da pele, mais do que nunca, precisamos repensar, ou até mesmo descontinuar o uso de expressões desse tipo. Aliás, o que não falta na língua portuguesa é vocabulário para isso; por exemplo, para nos referirmos ao mercado contrabandista é só usarmos “mercado clandestino”; um trabalho que não satisfaz quem o contratou é “trabalho ruim” ou “trabalho mal feito” e, já que alma não tem cor, dizer que alguém tem “alma branca” não é lá o melhor dos elogios.
Assim, se você aproveitou, ou não as promoções da Black Friday, não deixe de refletir sobre as palavras que você escolhe para usar no dia a dia. Você tem todo o direito de fazer as escolhas, contudo, pense se deseja mesmo continuar reproduzindo esses preconceitos, afinal, como disse Henry David Thoreau, autor, poeta e filósofo estadunidense, “as coisas não mudam; nós é que mudamos”, ou pelo menos, deveríamos escolher mudar!
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MICHELLE APARECIDA PEREIRA LOPES: Doutora em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos e pesquisadora da constituição discursiva do corpo feminino ao longo da história. É docente e coordenadora do curso de Letras da Universidade do Estado de Minas Gerais - Unidade de Passos.