ELY VIEITEZ LISBOA

Amargo pesadelo

Por: Ely VIeitez Lisboa | Categoria: Cultura | 14-12-2019 11:04 | 1434
Foto: Reprodução

Um filme, como um texto literário, pode ser lido como um discurso, em vários níveis. Quando é de má qualidade, raso, apenas narra uma história. Ao contrário, quando é arte verdadeira, são narrativas literárias visuais, têm um contexto rico, mensagens inteligentes, profundas, podem ser analisados como um grande texto.

O filme é famoso: "Amargo Pesadelo", de 1972. Com Jon Voight, Burt Reynolds, sob a direção de John Boorman. Muito premiado, sempre atual; cada vez que é visto descobrem-se riquezas preciosas.  O título, em português, é muito expressivo, foca a tragédia das personagens que carregarão, para sempre, as lembranças hediondas. Em inglês o termo é mais rico, semanticamente, explicitando a narrativa: "Delivrance" é entrega, resgate, parto.

Desde o início, os diálogos mostram a razão da insólita viagem: é o homem que quer violentar, possuir a natureza, antes que ela morra. É a tentativa de resgate das antigas sensações dos primeiros conquistadores que descobriram aquela terra, através do rio. É o parto terrível, doloroso, pagando inclusive com a morte de um deles, do outro que é violentado, de todos que conhecem o medo e a dor. Os sobreviventes renascem para a vida, mas para sempre marcados por trágica condição: com o estigma do medo, da vergonha e um deles mutilado.

Eles acham que a vida não tem riscos, é mero jogo. Descobrem, após, que jamais sobram vencedores. "Delivrance" quer dizer também: delivramen-to, dequitação, dequitadura, todos os termos relacionados a parto, a expulsão e decesso, que é morte, óbito, passamen-to, diminuição, rebaixamento, redução para o inferior. O campo semântico do título é uma súmula das muitas verdades exploradas no filme.

A simbologia do filme é bela. Antes do inferno, eles passam pelo limbo, com criaturas estranhas, velhas, carcomidas ou com degenerescência genética. Um dos pontos altos é o duelo de banjos (até hoje veiculado na Internet), um dos personagens com bizarro menino-velho, possivelmente autista. Por um momento a música realiza o milagre da interação e o garoto sorri. Após, fecha-se no mutismo do seu mundo de silêncio.

Todo o filme tem um clima de pesadelo, cada gesto, cada palavra é um índice e há afirmações notáveis. Quando procuram um lugar para enterrar o homem que mataram, em defesa própria, criatura monstruosa, um deles diz: "Em algum lugar, em nenhum lugar, em todo lugar". Ele fala de espaço geográfico, mas a situação é toda metafísica: "Muitas vezes é preciso perder, para se achar".

Eles conquistam o rio, como outros já o fizeram. Suas armas são primitivas, usam arco e flechas e pagam um preço alto: a morte de um, a vergonha de ser violentado sexualmente, a possível mutilação física do líder do grupo. Seus castigos terríveis têm uma relação de causa e efeito, como os semideuses Prometeu, Sísifo e Tântalo, que também ousaram, transgrediram.

O final é aberto, há alguns símbolos fálicos evidentes e resta a selvageria do rio que se defende. A contínua relação de crime/castigo, a necessidade quase herética do homem de possuir, violentar, conquistar. O preço que ele paga por esta amarga vitória de Pirro é que os sobreviventes nunca mais serão os mesmos, eternamente perseguidos por pesadelos dantescos.  O rio sempre poderá devolver seus mortos. É a perdição.  E na cena final, a visão plácida do rio, como uma ameaça ou um escárnio.

(*) Ely Vieitez Lisboa é escritora
E-mail: elyvieitez@uol.com.br