A aquinense Aline Carneiro sempre buscou por conhecimento e, graças à boa base familiar que teve, nunca lhe faltou contato com as artes e, por meio desta, se constituiu enquanto sujeito. Amante do teatro e da literatura, ela lembra da importância que é a junção das artes e educação para a construção do ser humano e ressalta o quão importante é dar espaço e oportunidade para as pessoas crescerem, indo na contramão da “meritocracia” que, conforme ela mesma define, é pura ficção. Formada em Administração e Comércio Exterior, Aline é filha do servidor público Paulo Carneiro e da professora Isabel Moreira, e irmã (um ano) mais velha do Diego que, conforme ela diz, é um de seus melhores amigos. Com alegria muito particular de sua pessoa, ela recebe a reportagem do Jornal do Sudoeste e conta um pouco sobre sua formação e peripécias da vida.
Jornal do Sudoeste: como foi crescer em São Tomás de Aquino?
A.C.: Há sempre o ônus e o bônus, porque em São Tomás me recordo que não tínhamos acesso a nada, e até a quarta série do fundamental estudei na roça porque minha mãe trabalhava na escola do estado e do município e não tinha com quem nos deixar, esta era uma forma de podermos ficar com ela. Foram os melhores anos escolares da minha vida. Houve uma época em que ela machucou as cordas vocais e não podia dar aula, então foi para a biblioteca e foi maravilhoso, porque ela chegava com diversos livros para mim e para o papai ler.
Jornal do Sudoeste: essa Aline de hoje, que é apaixonada por livros e por cultura de uma maneira geral, vem desta época?
A.C.: Sim, acredito que todo mundo que é filho de professor, não tem muita opção, a não ser que seja muito rebelde, portanto, minhas notas eram sempre muito boas. Eu e meu irmão gostávamos muito ler e sempre tivemos facilidade na escola. Eu era uma aluna que gostava de tudo, principalmente Literatura e Inglês, tanto que comecei a dar aulas de Inglês quando tinha 15 anos. Cresci no meio dessas influências, tanto da minha mãe quanto do meu pai, que pinta quadros maravilhosos, inclusive diversos cenários do teatro ou foram meu pai ou meu irmão que fizeram, e meu irmão é o melhor desenhista que eu conheço. Meu pai também é escultor, instrumentista e autodidata. É incrível porque até eu entrar no Ensino Médio, ele não tinha terminado o Fundamental e nos formamos quase na mesma época. Papai fez faculdade já numa idade mais avançada, é formado em História, uma faculdade que ele fez no feeling porque já tinha amplo conhecimento.
Jornal do Sudoeste: é uma responsabilidade ter um pai assim?
A.C.: Sim, porque toda a vida sempre foi “o que você leu nesta semana”. Hoje em dia é algo mais lúdico, conversamos sobre livros e diversos temas, mas quando eu estava em formação, era mais ou menos assim: “quantos livros você leu?”. E é muito legal essa relação que nós temos com a literatura, até hoje eu me lembro o número do meu cartão da biblioteca, lá em São Tomás, que é 1094, e o primeiro livro que li na vida foi “A foca fofoqueira”. Na infância eu era apaixonada por Ziraldo, o meu livro favorito era o “Menino Maluquinho”.
Jornal do Sudoeste: e vocês sentavam para debater literatura?
A.C.: Sim, e sempre foi assim. Meu pai cobrava muito da gente e eu fui muito influenciada por ele. Sentíamos muito pressionados no sentido de saber um pouco de tudo e História era algo indiscutível, tínhamos que saber tudo, inclusive as datas. Houve uma época que ele parou de cobrar, mas nós nos cobrávamos muito, por medo de envergonhá-lo. Essa relação com a cultura, que meu pai sempre pediu, foi muito legal. E a minha mãe a mesma coisa, por ser professora e estar sempre ligada à escola, e essa história de que filho de professor tem vida boa é pura lenda. Minha mãe nos cobrava muito e eu tinha quase 100% de frequência na escola.
Jornal do Sudoeste: e a fase de escola em si, como foi esse período?
A.C.: Naquela época a qualidade do ensino era muito precária, hoje não sei como está. Tinha uma disparidade muito grande em relação a professores, porque ao passo que eu tive professores maravilhosos como a dona Mônica (que me deu aula de Inglês, História e Português) e a dona Márcia, que é a grande mestre da minha vida e uma mulher inteligentíssima e culta, também tive professores muito ruins. Além disso, a estrutura em si não ajudava, e não tínhamos nada extra, nenhum programa, nada que fosse diferenciado. Entendo que os professores não tinham condições também de ir além e faziam o máximo que tinham com os instrumentos que davam para eles. Muito do que aprendi, é porque fui atrás, eu e meu irmão sempre fomos muito curiosos.
Jornal do Sudoeste: um de seus grandes amigos e parceiro de teatro vem desta época, como foi isso?
A.C.: Sim, o Bruno Pessoni. Não me lembro de quando conheci o Bruno, mas ele e a Adriana Alves foi meio que um “pacote” e vieram juntos – Yin Yang. Éramos próximos, mas ainda não éramos amigos, quando fomos para a oficina de teatro, nunca mais nos desgrudamos. Recordo-me que quando a Euripa dos Santos, que já faleceu, chegou com essa oficina em São Tomás, muita gente procurou porque não havia nada assim até então. Ao longo do tempo foi minguando, mas o grupo que ficou era um grupo muito bom. A dona Euripa era muito influente no Estado de São Paulo e trouxe muito conhecimento legal para nós, fizemos diversas oficinas, entre elas com o Alex Gruli, que mudou completamente minha visão de teatro, me trouxe uma visão de um teatro mais desconstruído, e passamos a conhecer o teatro do absurdo, que até então eu não tinha conhecimento. Fizemos oficina de dança africana com um professor nascido próximo ao Egito, o Gemale Mo-hammed Yaman; enfim, todos conhecidos da Euripa! Conhecemos muita gente interessante pelo teatro. Eu e o Bruno sempre conversamos sobre como o teatro foi fundamental em nossas vidas.
Jornal do Sudoeste: você também escreve para teatro?
A.C: Eu não me atrevo, porque apesar de gostar muito de ler, não me considero uma pessoa muito criativa. E o Bruno sempre escreveu muito bem, e sempre gostei de participar de produções desde que fossem escritas e dirigidas pelo Bruno. Recordo-me que uma vez fizemos uma peça, e tínhamos duas semanas para montar tudo. Tinha uma pegada meio “O que terá acontecido com Baby Jane”, e o Bruno colocava personagens marcantes de São Tomás de Aquino. Foi aclamadíssimo e me recordo até que foi antes de um show da Ângela e do Arthur do Paraíso em Seresta. Depois, apresentamos essa peça em Paraíso, com personagens marcantes de Paraíso. Aprendi muito com o Bruno.
Jornal do Sudoeste: por que você quis estudar comércio exterior e não seguiu para esse lado das artes?
A.C: Eu sempre fui muito ligada à área de humanas, mas na faculdade eu me encontrei com as exatas e amo matemática. Hoje trabalho com números, mas já fiz muita coisa. Na faculdade, no começo não pensei que fosse vingar, depois virei até professora de estatística e dei aula do Senai. Faço muitas coisas e acho que isso vem do meu pai, que também faz muita coisa. Mas tomei essa decisão porque tenho uma facilidade muito grande com Línguas, falava Inglês fluente, Espanhol e tinha começado o Francês. Então, pensei muito o que fazer, porque não almejava morar em lugar grande, gosto de cidade pequena, dessa sensação de segurança e gosto de ter qualidade de vida. Meu grande problema ao entrar na faculdade, é que eu queria fazer de tudo, mas fui para o lado da Administração e Comércio Exterior porque era possível me manter aqui.
Jornal do Sudoeste: você sempre foi 1001 utilidades?
A.C: Eu trabalho desde os 11 anos de idade, mas nunca foi para sustentar a casa, era porque já sentia a necessidade de ter as minhas próprias coisas, inclusive minha mãe foi contra eu trabalhar. Mesmo assim, fui ser babá, cuidei de duas meninas, a Lara Tonin e a Lorena. Foi uma experiência muito legal, porque eu lia para elas, levava-as ao teatro para que eu pudesse ensaiar, e elas amavam, tanto que quando elas chegavam em casa iam brincar de teatro e imitar o que eu fazia. Fui babá, dei aula de informática, aula de Inglês, Estatística. Inclusive foram as aulas de Inglês que me trouxeram a Paraíso. No começo, ia e voltava para São Tomás, mas depois vim morar em uma república. E dei aula até pouco tempo. A última escola em que trabalhei foi a CCAA, e o Junior, que é o dono, é uma pessoa muito legal e a escola em si é muito organizada. Eu amava meus alunos, e tenho alunos, inclusive, que me tornei madrinha.
Jornal do Sudoeste: depois de formada, o que você resolveu fazer?
A.C: Durante toda a minha formação nunca deixei de trabalhar, e quando me formei fui morar em Belo Horizonte uma época, onde também dei aula de inglês, mas depois voltei para Paraíso e fui trabalhar em um Pet Shop para dar banho em cachorro, e eu adorava aquilo. Embora questionassem minha formação, eu precisava trabalhar e o que tivesse para fazer eu encarava. Logo depois, quis estudar contabilidade e procurei o Senac, lembro-me que conversei com a Lina, que é uma mulher incrível – e sempre tive exemplos sensacionais de mulheres em minha vida, a começar para pela minha mãe que é uma grande mulher e sempre me agarrei muito a esses role models de mulheres. A Lina teve curiosidade em me conhecer, naquele mesmo momento me chamou para dar aula. Fui para estudar contabilidade e saí empregada, dava aula de Negócios, Logística e Estatística. Logo depois, quando eu fui dar aula de Inglês, e sempre tive vontade de trabalhar com exportação, fiquei sabendo que precisava de alguém na Producol, que é onde trabalho hoje, então fui conversar com o Sérgio, fazer a entrevista, meio desesperançosa, mas me contrataram no ato. Já faz cinco anos que estou lá. Trabalhamos com exportação de fios cirúrgicos para, se não me engano, 10 países. Recentemente fui a uma feira de negócio em Düsseldorf, na Alemanha, e aproveitei para emendar minhas férias, e fiz um tour pela Europa.
Jornal do Sudoeste: co-mo foi essa experiência na Europa e qual lugar que você mais gostou de visitar?
A.C: É um choque de realidade, porque não esquecemos de onde viemos. O maior sonho da minha vida era ir para a Europa, e quando eu cheguei era tudo o que eu achei que seria, e foi até mais. Quando você chega, você se lembra de onde veio, de tudo o que passou e aguentou (e mulher sofre de tudo nessa vida), quando você se depara com aquilo a impressão é de que tudo vai ficar bem depois. Olhar toda aquela grandeza, e saber a história que tem por trás, é indescritível. Meu lugar favorito, acredito, foi Berlim, e pode ter sido pelo impacto inicial, e também pela história. Como meu pai nos cobrava bastante conhecimento de história, por todos os lugares que passávamos, nós sabíamos o que tinha se passado e o que representava. É muito bonito conhecer tudo.
Jornal do Sudoeste: como foi “voltar para a realidade” depois disso?
A.C: Quando chegamos aqui temos a sensação do quanto nosso país é sofrido. No meu círculo de amizades, conversamos muito sobre, e acredito que a violência no nosso país é decorrente da desigualdade social. Lá na Europa é tudo muito bem conservado, e há de se considerar que eles têm grana para isso. Mas aqui nossos governantes, embora deveriam, o foco não é a estética dos lugares, mas a política de subsistência. É impactante a diferença. Mas aqui é o que conseguimos fazer por hora, porque o Brasil é um país muito jovem, e muito desigual. Nós entendemos isso quando voltamos, mas é um baque.
Jornal do Sudoeste: como você enxerga essa questão das artes e educação no Brasil?
A.C: É desesperador de ver, principalmente por eu ter tido um contato muito íntimo com a cultura desde cedo, com o teatro, então fico muito preocupada de ver nossos líderes seguindo para um caminho de separação entre as artes e educação, e essa relação entre as duas coisas é fundamental. Acredito que as coisas estão caminhando para a deseducação, há muito desinteresse. Há uma frase do Victor Hugo que eu gosto muito: “Uma pessoa que fecha uma escola, abre uma cadeia”. É muito atual esta frase e faz muito sentido para mim. Eu não sou educadora, mas tive bons exemplos e minha mãe sempre disse que é o exemplo que faz tudo para a criança, então fico pensando: que exemplos são estes que as crianças irão receber, tanto dos responsáveis por elas quanto dos nossos governantes? É preocupante.
Jornal do Sudoeste: o fato de vir de uma cidade pequena, de ser de uma origem muito humilde, não te impediu de ter acesso a um universo cultural?
A.C: Não, e foi graças as minhas influências e, acredito, que por ser uma pessoa curiosa e ter vontade de aprender. Meritocracia não existe, é uma conversa boba de quem está no poder e manda nos outros. Acredito que nós tivemos um empurrão que nos ajudou, que tivemos oportunidades, que fomos vistos. Então, se você é uma pessoa que está numa posição de liderança, note as pessoas. Recordo-me que quando conversei com o Junior da CCAA, eu estava desempregada, e tudo o que ele me disse foi “passa lá”, e em duas semanas eu estava com muitas turmas dando aula. Não basta a gente ser e buscar, se não houver alguém que te veja e te dê oportunidades, não conseguiremos chegar a lugar algum. Faltam oportunidades e, hoje em dia, que aprendemos a ser cada vez mais ser feministas eu digo: deem espaço para as mulheres crescerem. Nós só queremos as mesmas oportunidades. Infelizmente o mundo é muito machista, mas quando vemos os exemplos que tivemos no passado, percebemos que já caminhamos um pouco, porém ainda falta muito para caminharmos.
Jornal do Sudoeste: qual o balanço que você faz dessa trajetória?
A.C: Eu gosto muito de aprender, a minha busca mais recente é sobre como eu posso ser uma pessoa mais colaboradora com o mundo. Diante disso, hoje tem o trabalho que realizo na ONG com a dona Márcia em São Tomás de Aquino, que realiza a promoção da cidadania por meio das artes, então lá temos aulas de artesanato, música, teatro, circo, balé com a Flávia Junqueira, e oficina de canto. Tento fazer coisas que são boas para o meio ambiente, sempre buscando acertar e crescer sempre por meio desses aprendizados.