ENTRETANTO

Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 01-02-2020 21:55 | 1100
Foto: Reprodução

Sócrates e a democracia
Já disse e repito: não aprendemos filosofia e nem história, muito menos história política, na escola ou mesmo na faculdade (com raras exceções). Sobra-nos a vida para nos ensinar. Temos que ser meio autodidatas. Resulta disso que amealhamos conceitos que nos são plantados superficialmente ao longo de nossa vida acadêmica e que, depois, ficamos repetindo como papagaios. Falamos sem entender nada do assunto, e achamos que entendemos. Com Sócrates e a democracia ateniense se dá assim. Todos consideramos o famoso filósofo grego o “pai” da democracia de Atenas, quando foi justamente o oposto. Sócrates era filósofo, professor e general, mas também era um aristocrata. Viveu não no apogeu, mas no declínio de Atenas, quando esta cidade-estado helênica se encontrava conquistada por espartanos. Nunca gostou do povo no poder e exigia governantes sábios e geniais. Como um dos líderes espartanos que mandavam `a  época na Atenas conquistada era discípulo seu, tramou para que permanecesse no cargo. Por isso, e porque ridicularizava deuses, instituições e celebridades, foi condenado à morte. Ele era, assim, uma mistura de Olavo de Carvalho com Porta dos Fundos. Jamais foi um democrata no sentido moderno da palavra, e a democracia ateniense não resistiu ao tempo e ao poderio romano que os conquistaria em definitivo logo em seguida. Mas nos legou a filosofia antiga, preciosa e inestimável.

Platão e o cristianismo
Diga-se de Sócrates, assim como de Jesus Cristo, que nunca nos sobrou dele nenhum escrito genuinamente seu, mas apenas aquilo que dele sabiam seus discípulos e admiradores.  O mais importante seguidor de Sócrates era Platão, este o inovador e propagador da filosofia grega ao longo dos séculos. Em sua obra fala por si e também conta histórias de seu mestre, inclusive do julgamento que resultou na condenação à morte de Sócrates. Como se vê, as semelhanças históricas entre Platão e Jesus são muitas, mas não param aí. Platão era genial e pode ser considerado o primeiro pensador da religião judaico-cristã, isso quatrocentos anos antes do nascimento de Cristo.  Em primeiro lugar, o sábio grego varre do mundo antigo a ideia politeísta de deuses e sacrifícios e oferendas e cria a imagem de um Deus em si mesmo que prega e entrega a bondade. Em segundo lugar, ele é o primeiro a ver Deus como alguém que está fora e está no todo, que tudo sabe e tudo pode. Toda a ideia de onisciência divina vem de Platão! Por fim, em seu mito da caverna, contido na República e também no Timeu (duas de suas obras primas),  Platão narra a história de pessoas aprisionadas por toda a vida em uma caverna e que da realidade lá fora só conheciam as luzes que parcialmente se vislumbravam da entrada inatingível da gruta. Acorrentados ali, não podiam ir ao encontro à luz e à liberdade. A imagem inalcançável era distante, mortiça, mas os acalentava e dava àqueles prisioneiros uma noção de realidade que era por eles interpretada na medida das limitações de sua prisão. Libertos das correntes que os prendiam, saíram da caverna e se depararam com a verdadeira luz em sua plenitude, e com isso as formas e cores verazes do mundo. Essa alegoria expressa a um só tempo nossa passagem de vida terrena, nosso ideal de fé e a importância desta fé e da religião que a antevê do mundo. Através desse vislumbre, imaginamos toda a felicidade contemplativa celeste. Para Platão, Deus era um ser celestial. Sem ele, teria sido impossível a existência da fé cristã como a entendemos hoje.

Zafón e a Inveja
Se você me acompanha neste espaço e gosta de ler, não deve perder, não pode deixar de conhecer a obra de Carlos Ruiz Zafón. Depois de Cervantes, o maior escritor espanhol de todos os tempos – o que não é pouco. Desde 2001 até aqui encantou milhões de leitores no mundo todo com sua prosa elegante e poética, falando em seus romances de amores e... livros! Para mim a maior novidade literária do Século 21, ao lado do norueguês Jo Nesbo. Veja-se, por exemplo, uma passagem de seu livro “O Jogo do Anjo”, em que Zafón discorre sobre os invejosos: “A inveja é a religião dos medíocres. Ela os reconforta, responde às angústias que os devoram por dentro. Em última análise, apodrece suas almas, permitindo que justifiquem a própria mesquinhez e cobiça, até o ponto de pensarem que são virtudes e que as portas do céu se abrirão para os infelizes como eles, que passam pela vida sem deixar outro rastro senão suas trapaceiras tentativas de depreciar os demais, de excluir e, se possível, destruir quem, pelo mero fato de existir e de ser quem são, põe em evidência sua pobreza de espírito, de mente e de valores. Bem aventurado aquele para quem os cretinos ladram, pois sua alma nunca lhes pertencerá”. Não percam seus livros. Comecem com a “Sombra do Vento”. Fantástico.
RENATO ZUPO, Magistrado, Escritor