As cartas sempre estiveram ligadas à minha vida, como um mistério, algo insondável, quase um carma. Quando era ainda uma criança, aos catorze anos, descobri em uma revista que pessoas do Brasil inteiro e até do exterior, davam seu endereço postal para trocar cartas com interessados. Não havia Internet, e-mails, twitter. Encantei-me e pouco tempo depois, eu me correspondia com umas vinte pessoas, sempre mais velhas que eu. Até de Portugal. O problema é que, encantados com minhas cartas, logo queriam retratos, encontros para me conhecer e não era bem isso que eu queria.
Anos depois, eu namorava um rapaz da aeronáutica; ele residia fora e vinha me ver quinzenalmente. Trocávamos muitas cartas. Terminei o namoro porque constatei que gostava só de sua garbosa farda branca, o que lhe dava um ar de ator de cinema. Ele não se importou muito com o término, mas me disse que minhas cartas ele jamais devolveria. Nem se eu entrasse na justiça. Eram um tesouro. Queria guardá-las, para no futuro mostrá-las aos filhos e netos. Não me zanguei. Fiquei até orgulhosa...
Quando terminei o segundo grau, todas minhas colegas foram fazer Faculdade em São Paulo. Só eu fui para Belo Horizonte, influenciada pelas minhas raízes mineiras e uma novidade que me encantara: a PUC de Beagá era uma das únicas em que as aulas do Curso de Letras (francês, espanhol e italiano) eram ministradas na própria língua, por professores europeus. E foi em uma aula de Literatura Francesa que conheci Me. Sévigné! Marie de Rabutin-Chantal, que entrou para a literatura, por suas notáveis cartas, que escrevia todos os dias à sua filha, quando se casou e saiu de Paris. Era um estilo tão novo, tão vivo e singular, que ela ficou famosa e se tornou o grande modelo do gênero epistolar.
Influenciada pelo estilo da Marquesa de Sévigné, comecei a escrever cartas bizarras, para minhas colegas, em São Paulo. Soube posteriormente que elas colocavam minhas missivas em uma espécie de varal, nos corredores da Universidade, para que alunos interessados as lessem. Quando fui estudar em Paris, quis ir de navio: quinze dias até a Europa, em um belo navio inglês. Fui escrevendo uma carta à minha mãe e ao chegar em Lisboa, eram vinte e seis páginas. Coloquei no Correio o enorme envelope para Ribeirão Preto e durante o ano que passei na Capital Francesa, embora com uma vida agitada de estudo e passeios, escrevia e recebia cartas quase diárias, de minha mãe e de pessoas queridas. Isso não aconteceria, se houvesse computador e celular...
Muito tempo depois, já em Ribeirão Preto, professora, entrei em um Banco e o gerente me cumprimentou com familiaridade. Como não o conhecia, perguntei-lhe a razão do carinho. Ele respondeu: Sou pai de uma grande amiga sua. Ela me dava para ler todas suas belas cartas, que você lhe enviava... Muitos outros episódios relativos a cartas me aconteceram. Penso então que não foi casual que, em 2003, publiquei Cartas a Cassandra, romance epistolar, cujos capítulos são cartas a uma possível leitora, falando sobre episódios da infância, da adolescência, da mocidade e da idade madura. O romance, o primeiro do gênero literário, foi bem aceito pela crítica, ganhou prêmios, mas escandalizou muitos leitores, pelas histórias eróticas e fortes das heroínas, pretensamente de ficção.
Fácil entender por que não gosto muito de e-mails. São curtos e falhos. Saudade de longas cartas, bem escritas e minuciosas... Elas sempre alimentaram minha alma.
(*)Ely Vieitez Lisboa é escritora.
E-mail: elyvieitez@uol.com.br