A Guarda Municipal em São Sebastião do Paraíso, Rosa dos Reis Lemes mesmo diante de inúmeros obstáculos e perdas, nunca deixou de acreditar em dias melhores e sempre se manteve firme, batalhando para dar uma vida boa ao seu filho, e também para ajudar aos seus pais. Foi com muita dificuldade, e enfrentando a dor da perda de uma irmã e a luta de seu pai contra um câncer, que ela conseguiu se formar em Direito pela Libertas Faculdade Integradas e, agora, pretende superar o desafio de passar na prova da OAB. Filha de Sebastião Felisbino Lemes e de Gracilene Lopes Lemes, e mãe do jovem universitário Júlio, aos 40 anos Rosa vive uma nova fase em sua vida e destaca que, apesar de todas as dificuldades, nunca deixou de ter fé e vontade de superar os desafios.
Jornal do Sudoeste: como foi sua infância?
R.R.L.: Eu morei na zona rural até mais ou menos os sete anos. Mas depois voltamos para Paraíso, onde estou até hoje. Sou a oitava filha de 10 irmãos, e meus pais criaram também dois netos, filhos de minha irmã que faleceu quando tinha apenas 27 anos. Eu e meus irmãos temos a idade muito próxima uns dos outros, e tivemos uma infância bem saudável, porém com muita dificuldade porque meus pais são de origem humilde. Naquela época não tínhamos uma boa estrutura financeira, mas um ajudava o outro porque começamos a trabalhar muito novos. As minhas irmãs mais velhas trabalhavam na roça - e tenho apenas dois irmãos, que também começaram a trabalhar cedo. Poucos estudaram, somente eu e minhas irmãs mais novas, eu fui a única que consegui fazer um curso superior e também foi difícil. Meu pai perdeu meus avós muito novo, casou-se muto novo com a minha mãe, e tudo sempre foi muito difícil para eles, mas estão juntos até hoje, saudáveis e bem.
Jornal do Sudoeste: Sua mãe não é daqui, como se deu essa mudança para Paraíso?
R.R.L.: Minha mãe é de uma cidade pequena, próxima a Goiânia é de lá também são minhas três irmãs velhas. Meu pai, que é de Paraíso, foi para lá e conheceu minha mãe, mas decidiram voltar para cá, onde tiveram juntos os outros filhos. Depois de um tempo, meus pais decidiram deixar a vida na zona rural porque meu pai já não se sentia mais saudável para trabalhar na roça, e viemos em busca de melhora. Eu mesma comecei a trabalhar muito nova, aos 10 anos como babá. Aos 13 fui trabalhar numa empresa de transporte coletivo onde fiquei até os 18. Depois comecei a trabalhar no comércio da cidade e, aos 19 tive meu filho, o Júlio. Ele foi, na verdade, meu presente, nasceu no dia 3 de setembro de 1999, e eu fiz 20 anos em 26 de setembro.
Jornal do Sudoeste: Como foi lidar com isso tu-do que estava acontecendo?
R.R.L.: Na época, por necessidade, fiz um curso para substituir o pai do Júlio, que é militar, na autoescola em que ele trabalhava. Fiz esse curso de instrutora e trabalhei nesta área por cerca de seis anos, saí quando prestei o concurso para entrar na Guarda Municipal, em 2006, onde estou até hoje. Ainda fiquei na autoescola por um tempo, mas estava com filho pequeno e ficou um pouco insustentável. Hoje meu menino já está com 20 anos. Durante esse período eu precisei me adaptar, porque era muito jovem quando me tornei mãe, mas nunca deixei de estudar. Quando engravidei estava terminando o ensino médio e foi um dos anos mais difíceis para mim, mas assim que tive meu filho, continuei indo para aula, fiz cursos técnicos, mas meu sonho ainda era fazer o Ensino Superior, estudar Direito.
Jornal do Sudoeste: Como foi esse processo?
R.R.L.: Na época eu não tinha condições de fazer faculdade, meu filho era muito novo, e gastávamos muito. Porém fui fazendo cursos técnicos, alguns gratuitos, outros ganhei bolsa. E ao longo desses anos fui me adaptando para conseguir entrar na faculdade. Recordo-me que quando fiz minha inscrição para prestar vestibular na Libertas, antes tinha feito inscrição para fazer um curso em outra faculdade, mas para Administração, porém no dia choveu muito e eu não consegui ir fazer essa prova. Talvez eu tivesse me arrependido caso tivesse dado certo naquele momento, porém Deus faz as coisas no tempo certo, acabei prestando a prova da Libertas e graças a Deus passei. Na época consegui uma bolsa e estudei os cinco anos. Foram os anos mais difíceis da minha vida.
Jornal do Sudoeste: O que aconteceu nesta época?
R.R.L.: Minha vida sofreu uma reviravolta. Do primeiro para o segundo ano uma das minhas irmãs, que teve câncer, veio a falecer, ela se chamava Maria Lúcia, a chamávamos de Lu. Até hoje sinto muita falta, era uma das minhas irmãs mais próximas, e que eu tinha mais contato. É madrinha do Júlio e o tratava como filho. Foi uma perda muito difícil. Ela lutou muito e durante um longo período fez todo o tratamento, mas não sobreviveu. Eu pensei em desistir da faculdade, não tinha cabeça para mais nada, mas uma das professoras, a Michele Cia, me deu todo o apoio que eu precisava para que eu não desistisse, dizia que eu era capaz e daria conta. Continuei firme, não cheguei a pegar nenhuma DP. Depois, após o falecimento da minha irmã, quando comecei a me recuperar, do terceiro para o quarto ano meu pai foi diagnosticado com um câncer de laringe. Foi um baque muito grande. Dessa vez eu quase parei mesmo com a faculdade, pensei em desistir, em trancar e depois continuar a estudar. Só faltava mais um ano, e tive uma amiga que me incentivou muito, me deu todo o suporte porque eu e uma de minhas irmãs, a Rosemar, acompanhamos meu pai durante todo o tratamento. Era consulta, quimioterapia, radioterapia. A rádio eram 35 sessões seguidas e eu que o levava. Foi uma correria. No meio disso tudo eu tinha que vir trabalhar e ainda tinha aula a noite. Foi um ano bem difícil.
Jornal do Sudoeste: Como foi lidar com isso tudo que estava acontecendo?
R.R.L.: Felizmente tive pessoas que me ajudaram muito nesse processo, como a Silvia que foi comandante da Guarda Municipal e me ajudou muito, tanto no trabalho quanto na minha vida pessoal, além de todas as pessoas da GM que sempre mantive muito contato, entre ele o Miguel Félix, que sempre foi muito solidário à situação. Quando a gente pensa que não vai dar conta, Deus coloca pessoas na nossa vida para que continuemos, e graças a isto eu me formei no ano passado. O próximo desafio é a prova da OAB. Eu só tenho a agradecer. Tenho um filho maravilhoso, que é meu grande orgulho e meu companheiro.
Jornal do Sudoeste: Você foi mãe muito jovem. Como é essa relação tendo em vista essa pouca idade separando vocês dois?
R.R.L.: Eu sou muito rigorosa com ele em relação aos estudos, a manter as coisas certas, então cobro muito dele. Em tese, acho que ele sofre um pouco, mas nós não brigamos, temos uma convivência muito boa. Somos grandes parceiros. Tanto que quando as pessoas me veem em alguma festa, nós estamos juntos. É muito legal e algumas pessoas até chegam a achar que estou de namorado novo (riso). Acredito que essa diferença de idade entre mãe e filho é muito pouca. Além disso, eu sou muito coruja e pego muito no pé, porque é muito difícil criar um filho sozinho nesse mundo que tem aí álcool, drogas e então você disputa seu filho com coisas muito mais fáceis. Preocupo-me com as companhias dele também, mas nosso convívio é muito bom, estamos sempre juntos. O mais interessante, é que quando eu me formei a alegria dele era maior que a minha própria. Isso é muito legal de ver, porque assim como ele torce muito por mim, eu torço por ele, que também é universitário e já vai para o terceiro ano de Engenharia Civil. Ele é meu maior orgulho e o que dá um up na minha vida, eu vivo por ele e meus pais, são as razões que me fazem levantar e continuar meu dia a dia. Ainda tenho o sonho de poder proporcionar uma vida ainda melhor para eles.
Jornal do Sudoeste: Seu pai conseguiu superar essa fase?
R.R.L.: Ele foi curado, graças a Deus. Recordo-me que quando houve o diagnóstico, entrei em choque, deixei ele e minha irmã no consultório porque não estava preparada para ouvir aquilo. Porém, passada toda a fase do tratamento, quando eu o levei para fazer o exame novamente e o médico me chamou para falar dos resultados, eu não tinha perna para levantar. Lembro-me que o médico questionou se ele havia realmente ficado doente, porque não havia nem sinais. Eu chorei muito, meu pai chorou, mas foi de alegria. Não conseguia falar o resultado para a minha mãe, que também começou a chorar. Até hoje meu pai não teve mais nada, faz todo um acompanhamento e quem o viu naquela situação, chegando a 39 quilos, não acredita que ele passou por isso. Foi uma época muito difícil. Minha mãe foi realmente muito forte, superou a perda de duas filhas, uma delas para o câncer, e depois passou por isso com o meu pai. Eu queria ser um pouquinho do que ela é, uma mulher forte e de muita fé.
Jornal do Sudoeste: embora tenha passado por essas perdas, o carinho ainda permanece...
R.R.L.: Sim. Quando me formei, embora sentisse que ela (minha irmã) estivesse presente, faltava alguém ali. Senti muita falta da Lu. A alegria dela era ver que a gente estava bem. Quando comecei a estudar, ela falava que ia a minha formatura. Quando consegui comprar minha casa, ela falava que iria me visitar, mas infelizmente não deu tempo. Às vezes somos um pouco egoístas, porque embora soubéssemos que ela estava sofrendo muito, a queríamos por perto. Foi uma perda muito difícil, pode passar o tempo que for, mas sei que não iremos nos recuperar fácil. Tentamos aceitar. Deus fez o melhor para ela, e temos que aceitar. Felizmente, meu pai, que vai fazer 80 anos, passou por isso e superou. Ele foi um milagre.
Jornal do Sudoeste: o que você dizer para os nossos leitores que estão passando por uma luta semelhante?
R.R.L.: Que nunca percam a esperança e a fé. Nós estamos aqui de passagem e sempre temos que fazer o melhor e o bem sem olhar a quem, sem esperar retorno, principalmente aos pais. Hoje vemos que falta amor tantos dos filhos para com os pais quanto dos pais para com os filhos. Não pode ser assim. Algumas pessoas ficam admiradas com a forma como tratamos nossos pais, mas temos que ter consciência de que nossos pais já fizeram tudo por nós e que é hora dos filhos retribuírem. As pessoas que já passaram por isso, principalmente com os pais, não devem perder a fé e ter esperança. E sempre apoiar os seus pais, porque eles precisam dos filhos. Valorize seu pai e sua mãe sempre, eles te deram a vida e você tem que no mínimo retribuir e oferecer o melhor porque em algum momento da vida deles, fizeram algo que nós não vimos, abriram mão de muita coisa que não ficamos sabendo para nos ajudar. Em relação à doença, toda a pessoa precisa de muita atenção, porque eles sofrem muito, e por mais que nós cheguemos a sofrer juntos, isso nem se compara com o que a pessoa que está doente está sofrendo. É muito comum nesse momento as pessoas se afastarem e vi isso durante o tratamento do meu pai: no hospital muitas pessoas iam fazer o tratamento sozinhas e isso é muito triste. É um tratamento que causa muito sofrimento, mas temos que acreditar e a fé também é muito importante.
Jornal do Sudoeste: qual a mensagem que você deixa para nossos jovens?
R.R.L.: Eu digo muito isso para meu filho: há coisas boas na vida como estudar, trabalhar, cuidar bem dos pais e dos irmãos e se divertir de maneira correta – porque muitos acham que diversão é consumir bebida alcoólica ou usar drogas, e não é. A mensagem que eu deixo para nossos jovens é: valorize mais a vida. Há tantos jovens perdendo a vida em trânsito, em brigas e, isso sempre relacionado ao uso dessas substâncias. Então, valorize a vida e mostre aos pais o porquê veio ao mundo porque eles sempre querem ver os filhos bem. Hoje me sinto muito realizada ao ver meu filho porque sei que tudo o que fiz por ele, estou colhendo os frutos. Só tenho a agradecer por tudo e tenho certeza que ele pensa o mesmo.
Jornal do Sudoeste: Qual é o balanço dessa trajetóriaR.R.L.: Eu tive uma vida de superação. Comecei a trabalhar muito cedo, fui mãe muito cedo, estudei muito e sempre tive que provar que era capaz. E só por ser mulher já é muito difícil e você precisa provar a todo momento que fez aquilo por ser capaz. Felizmente, em todos os lugares que trabalhei, sempre fui muito bem respeitada. Temos que sempre procurar fazer o melhor todos os dias e provar que somos capazes. Ainda há uma certa resistência em aceitar a mulher, principalmente se for mãe solteira. A minha vida foi de superação sempre, mas só tive experiências boas. Criei meu filho da mesma maneira que fui criada, e o ensinei a fazer de tudo. Apesar de ter tido uma vida difícil e aprendido a me virar sozinha, eu passo para meu menino que a vida no é só vitória, há também as perdas, as dificuldades que precisamos superar e acima de tudo amar a si mesmo e acreditar em si.