Nas últimas semanas o movimento “Vidas Negras Importam”, que ganhou o mundo após o ex-segurança negro George Floyd ser morto por sufocamento por um policial branco em uma abordagem nos Estados Unidos, reacendeu o debate sobre o racismo e a importância da discussão para o combate da prática que, como saldo, tem tirado inúmeras vidas negras diariamente.
No Brasil, vidas como a do adolescente João Pedro Motta, de 14 anos, que morreu após ser baleado no complexo de favelas do Salgueiro, em São Gonçalo, e do pequeno Miguel Otávio, de cinco, morto ao cair de um prédio de luxo após a patroa de sua mãe se recusar a cuidar da criança, são exemplos de como no país o racismo opera, ora velado, ora explicitamente, questões estas reforçadas pelo último censo realizado pelo IBGE, que traduziu em números a desigualdade racial no Brasil.
Antes de tudo, para entendermos como se deu a construção do racismo estrutural no Brasil e a atual conjuntura envolvendo o movimento “Vidas Negras Importam”, convidamos a historiadora Ana Júlia Soares Borges, e especialista em Ensino de Humanidades, para explicar a contextualização histórica sobre o assunto. Também ouvimos estudantes e profissionais que contaram um pouco de suas experiências com o racismo ao longo da vida.
A historiadora explica que o racismo no Brasil deve ser entendido enquanto uma construção histórica que tem fortes raízes na colonização portuguesa, porém, resiste até os dias atuais revelando uma face da sociedade brasileira que demonstra o quanto afro-brasileiros são, ainda nos dias atuais, submetidos a processos preconceituosos.
“A colonização portuguesa em terras brasileiras teve início no século XVI e uma de suas características principais foi a escravização de nativos africanos que foram trazidos de maneira compulsória para o trabalho, principalmente na agricultura e na mineração. O cotidiano dos cativos foi marcado pela violência como forma de manutenção da estrutura escravagista, porém engana-se quem pensa que não houve atos de resistência nesse período”, conta.
De acordo com Ana Júlia, esse cenário começa a modificar-se a partir do século XVIII, quando a Inglaterra, principal parceiro comercial luso-brasileiro, se posiciona de forma contrária a escravidão e institui leis como a “Bill Aberdeen” que permitia a marinha britânica atuar diretamente no combate ao tráfico negreiro. Já a partir de 1850, a nação brasileira dá início a implementação de leis para que o fim da escravidão se dê de forma gradual.
“Após a promulgação de leis como a ‘Lei Eusébio de Queiroós’, ‘Lei do Ventre Livre’ e a ‘Lei do Sexagenário’ em 1850, 1871 e 1885, respectivamente, a abolição veio com a ‘Lei Áurea’ no ano de 1888. Assinada pela Princesa Isabel, a Lei Áurea, ao contrário do que diz o senso comum, não foi fruto da generosidade da princesa e sim de uma luta de anos de diferentes grupos da sociedade brasileira, que juntos formavam o movimento abolicionista, sem também esquecer da grande pressão inglesa pelo fim do trabalho escravo brasileiro”, aponta a historiadora.
Ana Júlia destaca que apesar da notícia da abolição ter sido recebida com festa por parte da população e pelos cativos, ao longo do tempo questões começaram a surgir, principalmente sobre o acesso à terra e educação. Essas populações, conforme explica, continuaram marginalizadas e sem condições para que ascendessem socialmente. “Aos afro-brasileiros foi negada a contribuição para a construção da identidade nacional até meados da década de 1920. Em 1933 o pernambucano Gilberto Freyre publica Casa Grande & Senzala, obra que revolucionou as Ciências Humanas no país ao analisar as relações estabelecidas pelas três raças (negro, índio e branco). Freyre traz em sua obra uma ideia de relação cordial entre os povos que compunham o Brasil, assim, corroborando com a ideia de uma democracia racial que coloca independente de raça e etnia todos os brasileiros em pé de igualdade”, destaca.
Ainda, segundo a historiadora, a caminhada de luta do Movimento Negro brasileiro ainda perpassa pela Constituição de 1988 e a luta pelo direito de inclusão e educação que pode ser exemplificado pela lei de número 10.639/2003 incorporada à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e tornou obrigatório o ensino da História e Cultura afro-brasileira nas escolas ofertantes dos ensinos fundamental e médio, e a Lei 12.711/2012 conhecida como Lei de Cotas.
“Os atuais protestos, inspirados nos protestos americanos, são o reflexo de anos de apagamento político e marginalização. O que fica é a reflexão sobre até quando a luta contra o racismo e suas mazelas irão existir no Brasil e se um dia, de fato, poderemos viver sem medo”, completa.
DEBATE RACIAL
Professor Wanderson Cleiton do Carmo
Para o professor, doutor em educação, jornalista e psicanalista clínico, Wanderson Cleiton do Carmo, o debate racial nunca deixou de ser evidenciado nos Estados Unidos, e o que ecoa das ruas americanas para o mundo não é novidade. “Todo esse movimento que teve o poder de chamar atenção em meio a pandemia mortífera que assombra o mundo, somente demonstra a nova perspectiva da sociedade, onde não cabe mais rotulações, discriminações e preconceitos. O que espanta é a passividade da ‘maioria’ negra e ‘parda’ que se omite de direitos e espaços por século no Brasil”, diz.
Conforme lembra o professor, a palavra negro sempre esteve vinculada a negatividade das coisas e fatos. “A exemplo: ovelha negra, passado negro, lista negra, etc. Desde muito criança tive esta percepção, mesmo pertencendo a uma família multimiscigenada. A educação sempre foi base estrutural e a diferença étnica racial nunca deixou de ser evidente em minha vida. Enfrentar o problema sem se vitimar, mas se capacitando intelectualmente sempre foi meu mecanismo de autodefesa, apesar de compreender que conhecimentos e titulações nunca seriam formas facilitadoras, pelo contrário, tudo sempre foi mais difícil, questionável e demorado. Ser negro e doutor ainda cria espanto nas pessoas”, conta.
“O negro não precisa de privilégios, apenas de igualdade. Defender o discurso meritocrático é no mínimo uma ação covarde pelo mercado profissional, medir capacitações sem levar em consideração o histórico social do indivíduo não é ser justo, mas pesar com mãos fortes aos menos favorecido, e isto ocorre desde a vergonhosa abolição, onde as reparações sociais e psicológicas não aconteceram até hoje. O racismo institucional está de forma velada no nosso cotidiano, passou da hora de falarmos, debatermos e buscarmos mudanças verdadeiramente significativas. Acredito que os primeiros passos para efetivamente sairmos da ‘escuridão’ começou, espero que continue e alimento o sonho de dias melhores”, acrescenta.
(RE)DESCOBERTAS
Estudante de Letras, Mariana Oliveira
A estudante de Letras Mariana Aparecida Bárbara de Oliveira, conta que sua experiência com o racismo, apesar de ter acontecido em vários momentos ao longo de toda a sua vida, somente fez sentido aos 19 anos. “Foi um episódio marcante, no qual voltando da faculdade a noite acompanhada de um amigo também negro e fomos chamados de ‘macacos’ por um homem em uma bicicleta. Isso me fez parar para refletir nas semanas seguintes sobre as agressões explícitas ou veladas que eu havia sofrido por anos sem notar. Por possuir um tom de pele mais claro, eu nunca havia me identificado como negra, e sim parda, principalmente quando preenchia documentações”, relata.
A estudante destaca que sempre teve noção da sua afro-descendência, facilmente identificável por traços físicos, mas não se reconhecia como pertencente à comunidade negra. “Este foi um fator determinante para que eu não percebesse que eu era mais uma vítima do preconceito enraizado pelo racismo estrutural. Tudo começou com o meu cabelo, que alisei durante quatro anos, aguentando o processo doloroso de sentar por horas a fio na cadeira do salão de beleza, tendo meu couro cabeludo queimado por produtos químicos, para tentar ser aceita. Depois disso, era o nariz que eu achava feio, a boca grande demais. Quem sabe se eu fosse como as outras não seria considerada ‘bonita’? Inconscientemente, eu assimilava e internalizava as micro agressões de colegas, amigos e demais pessoas, destruindo a minha autoestima em função do que era socialmente aceitável segundo a opinião alheia”, acrescenta.
Conforme Mariana, “assim como muitas meninas e mulheres negras, eu cresci sem uma referência do que é ser uma mulher negra no Brasil. Não só em relação à aparência, mas nas oportunidades que nos são negadas e nas dificuldades presentes em diferentes contextos de vivência em que nos encontramos. A experiência que a faculdade me proporcionou foi um ponto de virada na minha vida, pois passei a ter contato com pessoas como eu, que me educaram em direção à busca da minha identidade. Tive acesso a materiais de leitura, diálogos e reflexões que infelizmente aqueles que estão fora da bolha acadêmica não têm, uma vez que o conhecimento ainda é muito elitizado. Me alegra ver que, aos poucos, com as plataformas digitais e redes sociais, novas vozes têm conquistado espaço, e pensadores contemporâneos têm atingido grupos que antes eram ignorados, levando os questionamentos sociais para a massa, democratizando conceitos que precisam ser discutidos e práticas que precisam ser combatidas com urgência em nosso país”.
RACISMO VELADO
Jornalista Roberto Nogueira
O jornalista Roberto Nogueira, narra que desde os tempos de criança acompanha esta situação referente ao racismo e diferenciações das pessoas por conta de classe social, religião ou cor da pele. “Nunca passei por uma situação constrangedora, mas é sabido que existe um certo preconceito velado por parte de algumas pessoas e não podemos generalizar. Quanto a esta repercussão toda com manifestações elas acontecem de tempos em tempos e por vezes ganham força dada a crueldade como foi este caso nos Estados Unidos. Mas não se pode esquecer que aqui no Brasil, existem casos como da Marielle, recentemente do menino João Pedro e tantas outras situações de vítimas de preconceito, de discriminação. Bom seria se nada disso existisse, não fossem necessários protestos, manifestações para que haja igualdade racial, cultural ou de outras formas de ser e existir. Insisto que é preciso se dar o valor e ao mesmo tempo cobrar, gritar e manifestar enquanto houver pessoas sendo tratadas com menos valor por ser negro, ser pobre ou por qualquer tipo de preconceito”.
EDUCAÇÃO E RACISMO
Publicitária Maria Paula Fernandes Ribeiro
A publicitária Maria Paula Fernandes Ribeiro, que nasceu e viveu parte de sua vida em Machado, interior de Minas Gerais, conta que não consegue se lembrar de sua primeira experiência com o racismo, mas destaca que grande parte foi durante a sua infância, época que se recorda da perseguição de professora ao bullying feito por outras crianças. “Quando eu era criança não entendia o porquê do meu pai fazer tanta questão em nos manter ‘bem arrumadas’ e gastar o que podia com o nosso material escolar. Hoje eu entendo. Sempre gostei de estudar, me empolgava com tudo o que aprendia, o incentivo e o apoio dos meus pais foram extremamente importantes para mim”.
Maria recorda de um episódio que a marcou bastante, aos 13 anos: “foi após uma conhecida da minha mãe, uma educadora, nos encontrar no caminho vindo da casa onde minha mãe trabalhava na época. Ouvi a seguinte frase: ‘ah, ela foi junto para aprender com a mãe’. Não consigo me lembrar do resto, mas lembro da minha mãe me olhar depois com os olhos vermelhos e me dizer que eu iria estudar, que ela não queria essa vida pra mim. Tenho muito orgulho da minha mãe e respeito por essa profissão que me manteve por 4 anos em uma universidade e me proporcionou uma formação. Mas eu entendi o que ela queria me dizer nesse dia e toda vez que eu ouvia ‘que a educação é a única coisa que eles não podem nos tirar’, mas ainda questionam. Não é um conto sobre meritocracia e sim sobre o racismo estrutural, que nos coloca ou tenta nos colocar onde convém”, destaca.
Conforme a publicitária, é muito importante os questionamentos e os debates levantados nos últimos dias pelo movimento “Black Lives Matter”. “Todavia, preocupa-me alguns fatores, se posicionar e estar dispostos a dialogar são coisas ótimas, mas sabemos que vai além disso. Não é um fato isolado, o racismo acontece todos os dias: é quando se é preso por estar portando um pinho sol, ou ser confundida com um bandido pelo cabelo, é ser seguido dentro de um estabelecimento, ser olhado com espanto e desdém em uma entrevista de emprego, quando se é morto dentro de casa, quando sua palavra não vale. O Brasil é um país racista e o ‘somos miscigenados’ é uma desculpa que não cola mais, a suspeita tem cor, espero que esse debate dure para que saía uma conscientização de verdade e soluções concretas. Não basta se dizer antirracista, tem que agir como um”.
RACISMO DE CADA DIA
A jornalista Geovana Vara Gonçalves
A jornalista Geovana Vara Gonçalves, conta que sua construção de identidade enquanto mulher negra se deu no início da sua graduação na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG-Passos). “Tive uma construção de identidade tardia como grande parte das pessoas negras.
A partir daí, comecei a identificar palavras e ações racistas que eram dirigidas a mim desde que eu era criança, falas racistas que começavam na maioria das vezes em relação ao meu cabelo que por ser cacheado não se enquadrava no padrão de cabelo liso, e por isso eu ouvia frequentemente: ‘por que você não alisa o seu cabelo, ficaria mais fácil e mais bonito’ , ‘ah o seu cabelo só serve pra ficar muito bem amarrado’, são falas duras como estas me seguiram até pouco antes da maioridade”, recorda.
Entre outras falas, ela lembra que algumas foram direcionadas a sua cor. “‘Como você é uma morena bonita’, ‘ah, você não é negra, é moreninha’. Estes são apenas alguns relatos, porque todos os dias sofremos as mais diversas situações racistas”, acrescenta.
Geovana lembra que estudo desenvolvido pela BBC Brasil aponta que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, vidas negras que são tomadas pelo racismo estrutural presente em nossa sociedade. “Os assassinatos de João Pedro de 14 anos, no Rio de Janeiro, e de George Floyd de 46 anos nos Estados Unidos, foram o gatilho para que nossa luta pelas vidas negras fosse ouvida. Todos os dias diversas vidas negras são tomadas pela violência policial e não chegam ao nosso conhecimento. Até quando a carne mais barata do mercado será a negra?”, completa.
Último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), evidenciou que a desigualmente racial no país ainda é muito marcante. Os dados apontaram que apesar da população brasileira ser majoritariamente composta de pretos ou pardos, e de o acesso às pessoas negras à Educação Superior ter aumentado, ainda é discrepante a diferença salarial e a ocupação de pessoas negras em cargos de liderança. Os estudos apontaram ainda que a violência atinge três vezes mais a população negra do que a população branca.
EDUCAÇÃO
De acordo com os dados, entre a população preta ou parda de 18 a 24 anos que estudava, o percentual cursando ensino superior aumentou de 50,5% em 2016 para 55,6% em 2018, mas ainda ficou abaixo do percentual de brancos da mesma faixa etária (78,8%). Em relação a baixa escolaridade, neste mesmo período, o percentual de jovens de 18 a 24 anos pretos ou pardos com menos de 11 anos de estudo e que não frequentava a escola caiu 30,8% para 28,8%. Esse indicador era de 17,4% entre os brancos, em 2018.
Na população de jovens de 18 a 24 anos, frequentando ou não instituição de ensino, o percentual de brancos que frequentava ou já havia concluído o ensino superior (36,1%), era quase o dobro do de jovens pretos ou pardos, (18,3%). Segundo os dados a taxa de ingresso no nível superior (percentual da população que concluiu ao menos o ensino médio e que entrou no ensino superior, independentemente de tê-lo concluído ou não) dos pretos ou pardos era de 35,4% e dos brancos, 53,2%.
Já em relação a conclusão do ensino médio por pessoas pretas ou pardas a taxa era de 61,8% e a dos brancos, 76,8%. Conforme o IBGE, embora as mulheres apresentem melhores indicadores educacionais que os homens de mesma cor ou raça, a taxa de conclusão do ensino médio dos homens brancos (72,0%) era maior que a das mulheres pretas ou pardas (67.6%). Entre os jovens de 18 a 24 anos com ensino médio completo que não estavam frequentando a escola por terem que trabalhar ou procurar trabalho, 61,8% eram pretos ou pardos.
TRABALHO
De acordo com o IBGE, no mercado de trabalho os pretos ou pardos representavam 64,2% da população desocupada e 66,1% da população subutilizada. E, enquanto 34,6% dos trabalhadores brancos estavam em ocupações informais, entre os pretos ou pardos esse percentual era de 47,3%. O rendimento médio mensal das pessoas brancas ocupadas (R$2.796) foi 73,9% superior ao da população preta ou parda (R$1.608). Os brancos com nível superior completo ganhavam por hora 45% a mais do que os pretos ou pardos com o mesmo nível de instrução.
Os dados também evidenciaram que a desigualdade estava presente na distribuição de cargos gerenciais, somente 29,9% deles eram exercidos por pessoas pretas ou pardas. Em relação à distribuição de renda, os pretos ou pardos representavam 75,2% do grupo formado pelos 10% da população com os menores rendimentos e apenas 27,7% dos 10% da população com os maiores rendimentos.
VIOLÊNCIA
O IBGE apontou ainda que pretos ou pardos têm 2,7 vezes mais chances de serem vítimas de homicídio do que brancos. A pesquisa apontou que a taxa de homicídios no Brasil, em 2017, foi 16,0% para brancos e 43,4% para pretos ou pardos. A série histórica revelou ainda que, enquanto a taxa manteve-se estável para os brancos, ela aumentou para os pretos ou pardos entre 2012 (37,2) e 2018 (43,4), o que representa cerca de 255 mil mortes por homicídio registradas no SIM em seis anos.
Em todos os grupos etários, a taxa de homicídios dos pretos ou pardos superou a dos brancos. A taxa de homicídios para pretos ou pardos de 15 a 29 anos chegou a 98,5 em 2017, contra 34,0 para brancos. Para os jovens pretos ou pardos do sexo masculino, a taxa foi 185,0%. Por fim, os dados apontaram ainda que mais da metade dos alunos pretos ou pardos estudavam em estabelecimentos localizados em área de risco em termos de violência.