LÍNGUA SOLTA

Romantizações perigosas

Por: Michelle Aparecida Pereira Lopes | Categoria: Educação | 24-06-2020 00:17 | 1423
Michelle Aparecida Pereira Lopes
Michelle Aparecida Pereira Lopes Foto: Reprodução

Há algum tempo pensei em escrever sobre o tema do texto de hoje, mas confesso que precisei de alguns dias para refletir sobre o assunto; posso dizer que fiquei remoendo esse texto, numa espécie de regurgitação mental, um vai e volta de ideias, até que eu me sentisse segura para escrevê-lo. Assim, eis o texto de hoje! Nele, as reflexões são acerca do tal do ensino remoto, das tais aulas à distância e de tudo mais que envolve a educação e vem alterando a rotina de pais, de alunos e de professores neste tempo de pandemia. Como professora, é desse lugar que falo neste texto.

Para que eu me faça compreender, começo resgatando o verbo “romantizar”; o dicionário nos informa que romantizar equivale a “contar algo em forma de romance”, “idear romances e descrições fantasiosas”, “romancear”. Disso, podemos compreender que romantizar algo é criar uma espécie de narrativa dos fatos de modo que possamos compreendê-los não do modo como realmente são, mas sim como gostaríamos que fossem. Romancear algo, ou romantizar algo é idealizar, ou seja, pensar naquilo mais pela nossa idealização e menos pela realidade. Não é por acaso que, na Literatura, o período literário no qual a escrita baseava-se nas idealizações, foi chamado de Romantismo.

É a partir disso que me propus a pensar sobre a educação neste momento, principalmente porque tenho visto uma espécie de romantização de tudo que os professores têm vivido ao enfrentarem as atividades do ensino remoto. A romantização acontece quando professores, ao mencionarem todas as dificuldades que enfrentam com as atividades de ensino remoto – e acreditem, não são poucas – optam pelo discurso da superação, ou pelo discurso da reinvenção de si mesmos, como se estivessem agradecendo pelo que foram, de certo modo, obrigados a fazer; ou, ainda, como se eles mesmos tivessem planejado tudo isso como forma de se superarem, porém, não foi assim que aconteceu.

Primeiramente, precisamos considerar o fato de que o ensino remoto – do modo como vem acontecendo – não constava do planejamento da maioria das escolas, públicas ou particulares; apenas algumas instituições de ensino superior estavam aptas a ministrar até 20% de sua carga horária por meio de atividades à distância. Desse modo, as ações de cada escola são medidas paliativas para o enfrentamento de uma pandemia; são medidas implantadas sem terem sido de fato planejadas antes do início do ano letivo.

Todos – gestores e professores – foram pegos de surpresa pela quarentena e foram obrigados a implantar ações que pareciam ser as mais adequadas ao momento. Sendo assim, para os professores, não é uma jornada de aprendizado, não é um workshop de aperfeiçoamento didático, não é uma pós-graduação em metodologias ativas; é uma situação de pandemia que impôs mudanças e adaptações sem planejamento prévio de cada um dos profissionais envolvidos. Sem dúvida, alguém poderá refutar tudo isso afirmando que sempre é bom aprender algo novo! Concordo! Melhor ainda é quando nós mesmos decidimos o que de novo queremos aprender. E, obviamente, nem todos querem aprender a lidar com mais tecnologia, o que é essencial para o cotidiano, basta a muitos.

As atividades de ensino remoto impactaram a rotina dos professores, principalmente daqueles que desconheciam o universo tecnológico. Aliás, conhecer tecnologia e suas ferramentas parece ter passado a ser o diferencial de um professor, isto é, vale mais saber usar o Google Teams que conhecer a fundo o conteúdo que ministra. Até que ponto dominar a tecnologia é mais importante do que dominar a própria disciplina? Eis uma questão que merece ser bem pensada.

Outras questões que gostaria de deixar para reflexão dizem respeito às implicações da adoção do ensino remoto, se, por exemplo, após a pandemia, governantes e gestores considerarem que é possível ofertar educação apenas à distância. Qual será, de fato, o papel do professor? Qual será a carga horária de um professor se seu conteúdo poderá ser gravado e reproduzido infinitamente? Quais os impactos disso na sua remuneração? Depois que tudo isso passar, os professores correm, sim, um sério risco.

Por isso, encarar a necessidade de aprender a gravar a vídeos, dar aulas on-line, participar de reuniões virtuais, criar chats para esclarecer as dúvidas, usar a plataforma Moodle e tantos outros aplicativos, não por vontade própria, mas por certa imposição, devem ser encarados como atitudes necessárias ao momento que vivemos, mas não devem ser de modo algum, romanceadas, porque fora da idealização, as consequências são reais.

A romantização cria uma espécie de cortina de fumaça que embaça a realidade e impede a percepção do que realmente estamos enfrentando; mais do que isso, faz a imposição ser vista como algo normal e por isso, cada vez mais fácil de ser aceita. Além disso, a romantização diminui nossa capacidade de refletir sobre as implicações futuras de tudo que estamos vivendo, por isso as romantizações sempre são perigosas!

Siga-nos no Instagram:@lingua_ssolta

Envie comentários e/ou sugira algum assunto: soltalingua9@gmail.com

Michelle Aparecida Pereira Lopes é uma professora apaixonada pelas Letras. É doutora em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ministra as disciplinas relacionadas à Língua Portuguesa na Universidade do Estado de Minas Gerais, UEMG - Unidade Passos. Também ensina Gramática no Ensino Médio e Cursinho do Colégio Objetivo NHN, Passos.