Era uma vez, no século XXI... Naquele tempo, os sujeitos estavam muito envolvidos em seus afazeres diários; a maioria tinha tarefas e mais tarefas para resolver todos os dias e, assim, sobrava pouco tempo para relaxar e curtir momentos que lhes proporcionassem algum prazer. Não importava que sempre fossem surpreendidos com os avisos que recebiam a todo momento: uma dorzinha de cabeça que aparecia do nada, uma coluna travada antes mesmo de se colocar o pé no chão, um relacionamento familiar tumultuado, algumas pequenas frustrações no trabalho, algumas notas baixas na escola, uma ou outra reunião improdutiva... Eles seguiam, sem se preocuparem com o fato de seus sistemas operacionais estarem sobrecarregados.
De repente, num começo de ano, tudo parou. Não havia mais compromissos inadiáveis, não havia mais consultas médicas que os entupissem de remédios para mascarar a dor; sequer podiam sair de casa; não havia aulas, imaginem! As escolas, os comércios, os bancos, as contabilidades, as agências de viagens, tudo parou; claro que não foi sem motivo.
No início, parecia mesmo que a vida havia ficado mais molenga, alguns acreditaram que aquela necessidade de urgência havia se dissipado. A sensação de desobrigação, contudo, durou muito pouco! O que os sujeitos não sabiam é que a urgência de antes atualizava-se em uma urgência de maior escala, a urgência do virtual. Na urgência do virtual, havia uma série de atualizações aguardando o clique para serem baixadas.
Pobres sujeitos! Mesmo fechados em casa agora precisavam se atualizar, afinal, a “nova” urgência da vida exigia mais e mais habilidades. Muitas, inclusive, a maioria dos sujeitos nem estava disposta, ou queria aprender. Nem todos queriam baixar todas as atualizações, mas a urgência do momento impedia deixar algumas em stand-by para outro momento, por exemplo, para quando não estivessem usando a máquina para nada muito importante... Impossível aguardar! Não havia muita escolha: ou se tornavam sujeitos.com ou seriam apenas máquinas obsoletas... Software ultrapassado em hardwares, ainda que relativamente conservados, exigem atualização!
E foi assim que aquela urgência dos compromissos do mundo físico foi transferida para a urgência da atualização no mundo virtual. E os sujeitos.com passaram a operar em duas realidades, querendo ou não.
No mundo físico, havia uma vontade absurda de ficar em casa de chinelos e pijama, dormindo até mais tarde, curtindo uma musiquinha ou “maratonando” a série preferida; alguns gostariam de terminar aquele livro maravilhoso, outros só queriam se dedicar à poesia, à jardinagem ou mesmo à culinária. Mas, aos poucos, os sujeitos.com foram descobrindo que no mundo virtual o tempo era ainda mais escasso...
Baixar as atualizações de que eles precisavam roubava-lhes um tempo excessivo; as atualizações não eram rápidas e não havia como deixar a máquina ligada à noite; era preciso aprender tudo em fração de segundos. Era urgente aprender usar ferramentas e programas, gerar links e enviá-los, compartilhar telas, planilhas e textos, criar apresentações com efeitos atraentes, compilar textos e imagens, adequar a luz para gravar os vídeos, ajustar os microfones e alto falantes, escolher novos equipamentos e saber usá-los, etc... A realidade virtual era bem mais complicada que a realidade física; ser um sujeito.com exigia um esforço gigantesco e desgastante.
Os sujeitos.com passaram a levar a vida entre downloads e uploads; passaram a mensurar seu valor pela quantidade de dados recebidos e enviados; tornaram-se seres em constante atualização; viram suas vidas físicas transformarem-se em virtuais por meio dos inúmeros aplicativos que lhes consomem as horas do dia. Ser um sujeito.com, de fato, não era nada fácil! Ser um sujeito.com era viver esperando que seu sistema operacional já não suportasse mais a próxima atualização de software... E, quando isso acontecesse, o que seria desse sujeito.com? Seria substituído por uma versão mais atualizada ou mais compatível... Triste época aquela dos sujeitos.com!
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Michelle Aparecida Pereira Lopes é uma professora apaixonada pelas Letras. É doutora em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ministra as disciplinas relacionadas à Língua Portuguesa na Universidade do Estado de Minas Gerais, UEMG - Unidade Passos. Também ensina Gramática no Ensino Médio e Cursinho do Colégio Objetivo NHN, Passos.