Ao focalizar a história cultural de São Sebastião do Paraíso, polo cafeeiro do Sudoeste Mineiro, no contexto dos anos de 1960, faz-se necessário destacar a presença do professor de música Glicério de Atayde. Com o seu inseparável violão protegido por uma velha capa de tecido grosso, ele percorria a cidade, a passos lentos, para ministrar aulas particulares nas casas de seus alunos. Ganhava a vida com os valores recebidos como renumeração por ensinar os primeiros acordes aos jovens paraisenses. Era um homem culto, respeitoso com todas as pessoas, elegante nos gestos e no modo de falar. Havia passado algum tempo em São Paulo, onde exerceu sua arte, mas retornou à cidade que tanto amava. Dizia que ao viver em Paraíso sentia sua alma vibrar mais forte devido ao clima, às ruas, praças e aos diversos amigos que preservava.
Entre uma aula e outra, o violonista passava na sapataria do José Paes, amigo de longa data. Foi nesse espaço, entre sapatos, poemas e ideais sociais, que tive a chance de conhecê-lo e escutar suas histórias. Certos dias, quando a lira inspiradora preenchia seu estado de espírito, o saudoso mestre resolvia tocar algumas músicas, para o nosso deleite e dos amigos e clientes da sapataria. Formava-se então uma pequena plateia no reduzido espaço da oficina. Os ouvintes ficavam até mesmo na calçada para saborear aqueles momentos encantadores que paravam a rotina ainda tranquila da cidade daquele tempo.
Um dos seus mais talentosos alunos de violão, entre tantos outros que acompanhou nos primeiros passos musicais, foi o então jovem Haroldo Garcia de Figueiredo, que se tornou médico patologista e que, recentemente, partiu deste mundo. Mestre e discípulo devem então ter se encontrado, na dimensão superior, para rememorar os momentos que compartilharam na música.
O mestre violonista era um homem solitário, caminhava lentamente pelas ruas da cidade, com seu surrado terno escuro. Ao cair da noite, quando não mais tinha aulas particulares para ministrar, ele passava então no Bar 17, na esquina do Largo São José, para rever amigos, celebrar uma boa prosa e ainda tocar algumas músicas para os frequentadores do estabelecimento. Como cortesia da casa, era servido com um delicioso prato de canja, acompanhado com torradas. Refeição cujo sabor ficou na memória de muitos conterrâneos frequentadores daquele conhecido bar paraisense, sobretudo, na madrugada, depois de acabar o baile na Liga Operária.
Ficou registrado na memória de minha família uma visita que violonista Glicério fez a nossa casa, no dia do aniversário do meu pai, para presenteá-lo com a execução de algumas músicas. Tinha um repertório amplo e variado, incluindo boleros, valsas, modas sertanejas e até algumas músicas clássicas. Tocava também guarânias que dizia ter aprendido, quando esteve na região de fronteira do Brasil com o Paraguai, tocando em restaurantes e bares.
No final do ano passado, nosso conterrâneo e jornalista Gilberto Amaral, ao rememorar a trajetória musical do Caetano Lauria, em artigo publicado neste jornal, registrou a participação do Glicério de Atayde, num grupo que tocava na Igreja, sob a liderança do primeiro, com a participação ainda do Agostinho Sanazaro, Gerado de Abreu (Canavial) e de José Lauria, também violonista.
O nosso saudoso mestre devolveu seus ossos no cemitério municipal de São Sebastião do Paraíso. Há pouco tempo, me emocionei ao encontrar seu túmulo solitário, com uma pequena placa metálica em formato de violão, na qual consta uma mensagem prestada pelos seus amigos paraisenses. Passa-se o tempo, todos são nivelados ao rés do chão deste mundo. Fica o legado deixado pelas pessoas de bem. Ao mestre Glicério de Atayde, nossas reverências pelas lições musicais e pela forma como soube celebrar a vida no Paraíso terrestre.