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Wanderson Cleiton: Educação como ferramenta transformadora da realidade

Entendi desde cedo que a única forma de mudar meu contexto social era através da educação
Por: João Oliveira | Categoria: Entretenimento | 16-08-2020 08:00 | 1316
O professor Wanderson Cleiton é coordenador pedagógico na Rede Municipal de Ensino
O professor Wanderson Cleiton é coordenador pedagógico na Rede Municipal de Ensino Foto: Arquivo Pessoal

O professor Wanderson Cleiton do Carmo tem uma trajetória de vida regada a muita luta e desejo de crescer e transformar sua realidade social. De origem humilde, sempre buscou estudar e aprender, mesmo que todo o processo por trás disto fosse dificultoso e por vezes desanimador. Doutor em Ciências da Educação, com mestrado em Ciências da Religião e formações nas áreas da Filosofia, Teologia, Psicanálise e Jornalismo, hoje Wanderson atua como Coordenador Pedagógico na Rede Municipal de Ensino, e tem uma longa trajetória no campo da Comunicação e do Ensino. Filho mais velho de quatro irmãos do casal Eliane do Carmo Silva e Deuseni Soares da Silva, e pai da pequena Rebecca Helena, de oito anos, aos 43 anos destaca que apesar das adversidades da vida, sempre temos que seguir em frente e jamais desistir dos nossos objetivos.

Jornal do Sudoeste: Conte-nos um pouco de suas raízes, onde foi criado e memórias que tem desta época...
W.C.C.: Minha história é certamente parecida com milhares de outras histórias de pessoas que mesmo pobres, negras e com desajustes familiares nunca deixaram de sonhar e apostar nas possibilidades. Nasci e fui criado em Belo Horizonte, de origem extremamente humilde e de bairro periférico, onde droga, bebida e violência policial eram questões rotineiras, padrão social que infelizmente não se diferenciava também em meu seio familiar. Criado por um bom período pelos meus avós, os quais também sempre reportei como pais, busquei naquelas vidas sofridas incentivos para um futuro melhor. Não seguir a trajetória dos tios era a grande meta da infância, o que não me furtou das aventuras perigosas em busca de muito divertimento, o que gerou inúmeros machucados e muitas surras também. Sempre na contramão do sistema, até mesmo nas brincadeiras, onde a adrenalina era o combustível da inocência, adorava fantasiar os cantores e atores da televisão, mas os telejornais e os anúncios publicitários me fascinavam. Quando criança queria ser padre e jornalista, mas isto conto daqui a pouco. Reza a lenda que minha mãe ao realizar seus inúmeros afazeres, deixava o rádio ligado para que eu viesse a dormir, o que é algo que acontece sistematicamente até hoje. Estudar não estava no mesmo contexto da alegria de ir à escola, sempre com uma certa facilidade de aprender vendo e ouvindo, não era compreendido pelos professores, o que não mudou até hoje no sistema educacional. Mas com uma dádiva divina de saber articular um pouco com as palavras, sempre conseguia a ascensão a ano/série seguinte. Curiosamente, era sempre solicitado pelos professores para dialogar com os colegas que apresentavam pequenos problemas pessoais, mesmo não sendo um exemplo comportamental alcançava êxito, e achava aquilo algo incrível.          

Jornal do Sudoeste: Que importância teve a família na sua formação?
W.C.C.: Família é base estrutural para qualquer um em qualquer parte do mundo, desde criança entendi que se houver equilíbrio, carinho, harmonia e respeito no ambiente familiar, as chances para os desacertos na caminhada da vida tende a obter uma redução considerável, o que nem sempre encontrei em casa, no entanto, sobraram exemplos de caráter, honestidade e muita luta para que nunca faltasse o alimento diário. Em se tratando de formação, não houve inicialmente incentivo familiar, a prioridade naquelas circunstâncias eram que os filhos tivessem um emprego e uma vida honesta, o que é até hoje um pensamento comum e único na maioria das famílias periféricas de qualquer cidade. Mas não acredito que minha formação acadêmica tenha sido o grande trunfo para minha formação humanística, pelo contrário, hoje estou tentando levar essa sensibilidade para o meio acadêmico. Comecei a trabalhar aos 14 anos como servente de pedreiro e a coisa não parou por aí... Já fui auxiliar de produção em uma fábrica de móveis, iluminador de palco, produtor artístico, representante comercial, corretor de imóveis, propagandista, professor, jornalista, gestor de marketing, apresentador de rádio e televisão e até mesmo empresário. Sempre me virei para sobreviver, pois aos 18 anos já morava sozinho e não podia contar com nenhum tipo de auxílio. Brinco que fui forjado pela rua, os livros e os velhos. Aos 21 anos era responsável por um negócio próprio, onde oito famílias dependiam diretamente de meu sucesso para terem o sustento. Acreditar na possibilidade e ir à luta era questão de sobrevivência. Ainda bem jovem me tornei um vendedor ambulante, vendia produtos na rua, de porta em porta para não passar fome, e mal imaginava que aquela experiência seria um divisor de águas, onde aprendi muito e considero que aquela foi à grande escola que me levou para o rádio profissional precocemente, aos 16 anos. Hoje digo que continuo sendo um vendedor, o que mudou foram os produtos e não as habilidades. Hoje vendo esperança, fé, valorização pessoal, impulsionamento crítico e social, coisas que não vêm junto com o diploma da faculdade.                  

Jornal do Sudoeste: Você sempre teve inclinação à Educação? Conte-nos um pouco da sua história com o ensino...
W.C.C.:  Tive a sorte grande de ter encontrado alguns professores inspiradores, estudar nunca foi uma escolha, mas uma necessidade. Somente aos 15 anos consegui ler o primeiro livro por inteiro, não me esqueço, era da Coleção Vagalume e foi maravilhoso. A leitura me despertou para um mundo que até então era inacessível, consequentemente me tornei um “rato de biblioteca”, lendo até mesmo bula de remédio. No Ensino Médio integrado, optei para o magistério sem nem mesmo ter conhecimento da grade curricular do curso, mas foi apaixonante. Em 1996, ainda um garoto, consegui emprestado uma sala com cadeiras na rádio em que trabalhava e montei um curso de comunicação e oratória, a coisa deu muito certo e não parou mais, daí pra frente foram diversos outros cursos, pré-vestibular e escolas, sempre professando o poder da educação. O que era um trabalho complementar foi se tornando algo cada vez mais sério. Cheguei em 2005 a São Sebastião do Paraíso, contratado como jornalista e locutor da Rádio Paraíso AM, hoje Rádio da Família - emissora que tem todo o meu carinho e respeito. Disse pra mim mesmo que queria desacelerar e aqui iria constituir família, e foi o que aconteceu. Cada vez mais apaixonado pela educação, percebi a necessidade de buscar novos conhecimentos, o que faço até hoje. 

Jornal do Sudoeste: você tem uma formação bem completa, é doutor em Ciências da Educação, Filósofo, Jornalista e Psicanalista. Como foi chegar a uma formação tão completa?
W.C.C.: Nunca foi sorte, sempre foi fé e esforço. Entendi desde cedo que a única forma de mudar meu contexto social era através da educação. As dificuldades da vida era o motivacional para todos os obstáculos que surgiam. Ainda menor de idade iniciei os estudos como vocacionado ao sacerdócio católico, estudando os princípios teológicos e filosóficos da igreja e da fé. Fui motivado na época a candidatar-me para estudar no vaticano, mas neste mesmo período estava muito envolvido com o teatro, movimentos sociais e tinha meu trabalho na emissora de rádio, então desistir da ideia e me ingressei na Faculdade de Teologia e Ciências Humanas, onde obtive de forma leiga ambas as formações. Não foi fácil conciliar os estudos e a correria, pois nesta época cheguei a trabalhar em até três lugares ao mesmo tempo, tinha que pagar o aluguel, me manter e bancar a faculdade. Tive várias vezes o desejo de desistir de tudo, mas sabia que não tinha escolha, e ter uma formação superior naquela época estava muito longe para minha classe social. Após esse período, as oportunidades foram surgindo e as dificuldades foram ficando mais amenas. A formação na comunicação, por exemplo, foi um projeto da Universidade da Murcia - Espanha, onde ofereciam a oportunidade de formação para os comunicadores de países emergentes envolvidos em causas sociais, o que me possibilitou a oportunidade europeia. A psicanálise clinica surge como uma sequência da formação filosófica e a antiga habilidade de ouvir, acolher e me preocupar com as pessoas. Em um determinado momento, todos nós temos que buscar novos voos na carreira, na educação não é diferente, para chegar ao doutorado que foi realizado na Universidade Tecnológica de Assunção, tive que vender minha chácara no Condomínio Campo Alegre e continuar morando de aluguel, nada é fácil, não existe almoço de graça. Muitos já me perguntaram o motivo de não parar de estudar, acredito que a paixão pelo conhecimento tem grande influência, assim como a necessidade constante de se aperfeiçoar, por exemplo, estou cursando pedagogia pelo IFSuldeminas, e espero que termine ainda este ano. Hoje em dia você estuda até mesmo pelo celular, sobram vagas em vários cursos públicos e mesmo uma faculdade privada a facilidade de acesso é muito grande. O que não podemos é cruzar os braços e tentar achar desculpas para os nossos fracassos, nem sempre vai dá certo, mas tentar é o mínimo que podemos fazer.        

Jornal do Sudoeste: Conte-nos um pouco da sua trajetória profissional...
W.C.C.: Nunca foi fácil, sempre muito ralado e difícil com mais de um trabalho ao mesmo tempo, por isso já fiz tanta coisa. Vamos por parte para entendermos. Na comunicação sempre fui muito abençoado, iniciei como locutor/apresentador na Rádio Capital (BH), depois vieram: Metropolitana (BH), 107 (BH), Band (BH), Joven Pan (BH), IND (Passos), TV Rede Minas (BH/Passos), Família (S.S. Paraíso), Ouro Verde (S.S. Paraíso). Na imprensa escrita participei de alguns jornais e revistas também, atualmente sou colaborador da Revista Publish Cristã (SP). No campo educacional, trabalhei por 13 anos nas escolas estaduais de nossa cidade como professor de Filosofia e Ensino Religioso, o que me gera muita satisfação. Atualmente atuo como Coordenador Pedagógico na Rede Municipal de Ensino. Atuei também como professor da UFSJ e Ufscar, além de algumas faculdades privadas. Na área da Psicanálise, sempre atendi de forma voluntária, mas não consigo atender a demanda pelos meus outros afazeres, o que gera uma listinha de espera, infelizmente.        

Jornal do Sudoeste: Quais foram os maiores obstáculos enfrentados por você durante este processo de formação?
W.C.C.: O velho ditado é muito valido: todos olham os tombos e não os goles ingeridos. Não foi fácil fazer a primeira faculdade, era o único negro estudante da instituição, houve muitos dias onde não tinha o dinheiro para pagar a passagem do ônibus para chegar à faculdade e eu ia andando, ficar com fome e cochilar eram rotina nas aulas. Tive o nome restrito por atraso nas mensalidades, e dormir com fome aconteceu muitas vezes. No mestrado, saia na sexta-feira na hora do almoço da rodoviária de São Sebastião do Paraíso para assistir a aula à noite na Avenida Paulista, em São Paulo, ficar ainda sábado e domingo o dia todo em aula e chegar por volta das cinco da manhã de segunda-feira para lecionar nos três períodos, ou seja, das sete da manhã às dez e meia da noite. No doutorado não foi diferente, pegava o ônibus em Ribeirão Preto - Viação Pluma - vinte e seis horas de viagem, quando dava pegava uma promoção aérea, isso por cinco anos nos meses de janeiro e julho. Ocorreu um episódio onde chorei muito de raiva no aeroporto de Assunção por ter perdido o voo e não ter grana para o próximo, mais isso é minha história, não tenho nenhum arrependimento ou vergonha, faria tudo de novo.                      

Jornal do Sudoeste: nos últimos meses, temos assistido a diversas manifestações antirracistas. Enquanto homem negro, como é ver essa luta tão intensificada e, infelizmente, ainda presenciar a discriminação?
W.C.C.: Vivemos um racismo velado. Quem sente o preconceito e a dor que a discriminação provoca é somente quem tem a pele negra ou vive às margens periféricas deste país. Nunca olhei para as adversidades, assim como não fiz de minha pobreza e negritude um instrumento de desculpa. Sempre me identifiquei como um cidadão dotado de direitos e deveres como qualquer outro, algumas vezes a polícia e/ou algumas pessoas não entenderam desta forma, mas sempre interpretei que a falta de cultura e educação é o que motivaram certos indivíduos agirem desta maneira, mas trago comigo o conceito de que não se cobra educação e cultura de quem não tem. Certamente que houve diversas impossibilidades, empecilhos e dificuldades em decorrência de minha melanina, cada não que recebi foi interpretado como um talvez, entendendo que resistência é o DNA da minha ancestralidade. A raça humana deveria ser a única evidenciada na sociedade, mas as práticas ainda estão bem distantes do tolerável. Precisamos discutir o tema, buscar soluções assertivas e criar uma cultura da igualdade. Ficamos fingindo que não existe o racismo, e enquanto isso a questão não muda, o mundo felizmente está acordando para o fato e o Brasil não pode continuar na morosidade para tratar seus problemas sérios, históricos e pontuais. Minha filha de oito anos já sofreu racismo na escola, penso que o problema não está na criança agressora, mas em quem ela espelha, afinal, as crianças não nascem preconceituosas, mas aprendem com os adultos com quem convivem a se tornarem uma. Minha filha precisa aprender que sua cor não irá mudar e lutar por seus direitos, gerando a cultura da paz deve fazer parte integral de sua história e orgulho de vida. A bandeira dos direitos igualitários entre todos é algo que defendo desde minha consciência enquanto Ser, algo que certamente morrerei defendendo.                                 

Jornal do Sudoeste: Falando um pouco de educação, como avalia o ensino no nosso município? Quais os principais desafios para o professor em nosso município?
W.C.C.: Construir um ambiente de aprendizagem de qualidade é um dos grandes desafios em todo o país, o que não se torna diferente em São Sebastião do Paraíso. Nossos professores que atuam arduamente em nossas escolas públicas se deparam, de forma anfêmera, com a desvalorização profissional e a escassez de recursos para a realização de um trabalho de excelência. Desta forma, os desafios do processo educacional tendem a ficar cada vez mais dificultoso. Não existe bom senso político para que a educação entre na pauta das prioridades do país. Culpar o professor é uma das formas covardes e mais fáceis para camuflar o gravíssimo problema educacional, sendo na verdade o profissional da educação tão vítima, assim como seus alunos. O sistema educacional tenta se maquiar através de gráficos, mas na pratica a situação é muito preocupante. Nossa cidade agrega problemas assim como outras, tais como: baixa remuneração, pouca participação entre escola e família, excesso de alunos por turma, defasagem de aprendizado, falta de capacitação dos profissionais, currículos e métodos ultrapassados, estrutura física inadequada e escassez de recursos pedagógicos. Mas acredito que tudo passa por uma boa gestão. Certamente com o montante financeiro destinado ao sistema educacional de nosso município, evidência a falta de políticas e projetos assertivos. Mas sou um entusiasta da educação, todos os dias faço questão de mentalizar e acreditar que ainda tem jeito, sou prova viva que a educação é sim transformadora e formadora de cidadão politizado, consciente e com senso crítico e ético para colocar nossa educação no patamar mínimo necessário.      

Jornal do Sudoeste: a pandemia mudou muito a maneira de pensarmos a educação?
W.C.C.: Se até hoje as salas de aula se pareciam com aquelas do começo do século passado, agora temos a possibilidade de mudar para sempre o processo de ensino para além dos espaços da escola, criando inúmeras possibilidades de novas experiências de aprendizagem. A pandemia tem nos ensinado, o real valor de habilidades como criatividade, comunicação, colaboração, resolução de problemas complexos e adaptabilidade. Há anos tenho lutado para fazermos um debate sobre a adequação tecnológica no ambiente escolar, mas nunca fui levado a sério, agora, no entanto, querendo ou não a tecnologia tem sido uma das poucas formas para que o processo não paralise. Estamos em um caminho sem volta e sabemos historicamente que depois de grandes crises globais, tivemos também grandes invenções. O isolamento social vai passar, mas não podemos desperdiçar a oportunidade de mudar a educação de uma vez por todas.

Jornal do Sudoeste:  Qual a mensagem que deixa para nossos leitores nesses tempos tão difíceis?
W.C.C.: Sou um homem de fé e esperança, membro da Igreja Presbiteriana, e isso pessoalmente me ajuda e motiva a olhar de uma forma diferenciada para as imperfeições da vida. Há anos trabalho com palestras e vídeos motivacionais com o intuito de encorajar as pessoas, levando a reflexão suas vidas, sentimentos e valores existenciais. Em um momento em que por motivo de força maior somos forçados a desacelerar e mudarmos nossos hábitos, considero que, apesar da ansiedade, também é tempo de novas aprendizagens, adequações e mudanças de paradigmas. Convido você a novos desafios, encontrar um hobby, exercitar-se, ler um livro diferente dos seus gostos atuais e se permitir a coisas novas e inusitadas, buscando o novo em sua vida. Em tempo de transformação, transforme-se.