A educadora física e professora de artes marciais, Camilla Guimarães dos Reis, é uma profissional que desde muito cedo entendeu o valor que a educação teria para sua a vida e nunca deixou de correr atrás dos seus sonhos. Mesmo diante de frustrações, foi por meio do esporte que se encontrou e de onde hoje tira seu sustento. Ela acredita no poder transformador que o esporte pode causar em uma vida e, por meio do seu trabalho, acredita que se for capaz de mudar o mínimo que seja a realidade de uma pessoa e causar um bem com seu trabalho, sua trajetória e persistência terão valido toda a pena. Filha de Keila Guimarães, hoje, aos 27 anos, casada com Mayson Naves, é mãe do pequeno Noah, a quem busca deixar como legado um bom exemplo a se seguir.
Jornal do Sudoeste: Conte-nos um pouco sobre sua infância...
C.G.R.: Eu sou natural de Passos, mas vim para Paraíso ainda muito nova, meus amigos são todos de Paraíso, assim como minha formação e as memórias que tenho. Aqui fiquei até completar o Ensino Fundamental e depois me mudei para Muzambinho, onde fiz o Ensino Médio. Viemos para Paraíso porque minha mãe teve uma oportunidade e queria recomeçar. Ela criou a mim e aos meus irmãos sozinha. Aqui, acabou se casando novamente, mas não deu muito certo, e desse casamento tive mais dois irmãos, ou seja, somos em quatro. Meu irmão mais velho chama-se Natan, e minhas irmãs mais novas Kira, que já é casada e me deu dois sobrinhos, e Maria Eduarda, de 12 anos, que costumo dizer que foi a minha escola para a maternidade.
Jornal do Sudoeste: E como foram esses primeiros anos de vida em Paraíso?
C.G.R.: Apesar dos pesares, foi uma infância muito boa e tenho ótimas lembranças. Era uma infância de uma criança pobre e que vivia em um bairro pobre, que era brincar na rua, correr atrás de bola, soltar pipa. Recordo-me que minha mãe trabalhava muito para poder criar a mim e aos meus irmãos, e nesta fase, até o seu segundo casamento, quanto ela teve um suporte maior e pode trabalhar um pouco menos, não tenho muitas lembranças de ela ser tão presente, isso até os meus 10 anos. Depois o cenário do país foi mudando, e as condições de vida. Todavia, sempre fui moleca, gostava de esportes, era muito competitiva e não gostava de perder. Tanto o é, que nem tenho uma lembrança de quando comecei a praticar esporte, sempre foi algo que fez parte da minha vida.
Jornal do Sudoeste: O primeiro contato com as artes marciais, como surgiu?
C.G.R.: Foi por meio de um projeto social, quando eu ainda tinha oito anos. Comecei no Judô por meio de um projeto que se chamava Minas Olímpica e era muito legal, mas durou pouco, cerca de quatro anos e, quando houve mudança no cenário político da cidade, o projeto deixou de existir. Era uma iniciativa que consistia em a criança estudar um período e o outro se dedicar a alguma prática esportiva (oferecia-se a roupa, o treino, o lanche). Quando acabou, eu já não tinha mais condições de continuar treinando, tanto que todos os lugares que procurei era preciso pagar e, como era muito nova, não trabalhava e minha mãe não tinha condições de bancar, parei com os treinos. Recordo-me que nesta época tive contato com a Capoeira, também por meio de um projeto social na minha escola, lá no Inês Miranda. Eram alternativas que eu tinha, já que não podia pagar por isso.
Jornal do Sudoeste: E terminado o fundamental, você saiu de casa. Como foi isso?
C.G.R.: Sim. Na época eu tinha um namorado que tinha vontade de ir para Muzambinho estudar, e o pai dele nos levou para conhecer o campus do Instituto Federal e fiquei apaixonada. Para mim, aquilo era primeiro mundo. Prestei o “vestibular”, fui aprovada e fui para lá fazer o Ensino Médio com o técnico em agropecuária. Foi neste momento que tive uma maior imersão no esporte, era um outro sistema em que as práticas esportivas constavam como atividade extracurricular e você escolhia o que mais lhe agradava e fui para o campo das artes marciais. Neste período competi pelo Judô, e viajámos devido aos jogos internos que ocorriam. Durante os três anos que morei lá, foram três anos de treinos que aconteciam dentro do próprio campus e foi o período em que mais pude experenciar a rotina de um atleta.
Jornal do Sudoeste: E quando concluiu esse ciclo, como foi?
C.G.R.: É neste momento que surgem os primeiros obstáculos. Eu tinha o sonho de fazer Medicina Veterinária, foi por este motivo que em Muzambinho optei por fazer o agro técnico. Prestei vestibular, passei, mas não tinha condição financeira nenhuma para arcar com essa formação, porque até em Muzambinho eu fui com a cara e a coragem, mas eu sabia que teria todo um suporte do Instituto e não ficaria sem um teto para morar ou sem o que comer. Uma das opções era arrumar um emprego, mas o curso era integral e isto se tornava inviável. Lembro-me que até para prestar o vestibular foi muito difícil, mas demos um jeito, porém não tinha condição nem de me inscrever e, por mais esforços que tenhamos feito, não deu certo. Diante da frustração, voltei para Paraíso e tive que arrumar um emprego qualquer para me manter e ajudar das despesas de casa. Foram dois anos de inércia, e estava muito desiludida.
Jornal do Sudoeste: E quando as coisas começaram a mudar para você?
C.G.R.: Foi em 2014, quando a Academia Bronx, do Guarujá, por meio do Weder Medeiros e da Luzia, chegou a Paraíso. Nesta época, eu trabalhava bem próximo de onde eles estavam montando a academia e passava em frente todos os dias. Certo dia, encontrei a Luzia panfletando, vi as modalidades que tinha, entre elas Judô, então vi que era uma possibilidade por ser um esporte que eu já havia praticado e gostava. Todavia, logo que eles inauguraram, eu tive uma apendicite e não pude começar. Foram três meses de recuperação e, mesmo durante esse tempo, acompanhava alguns treinos. Após me recuperar, comecei a treinar por hobbie, o objetivo era ocupar meu tempo e me sentir bem. Foram seis meses de treino assim, com o Jiu-jítsu. Foi nesse momento que me percebi insatisfeita com meu trabalho, porque o melhor do meu dia era treinando. Decidi sair, mas até então acreditando que fosse encontrar um trabalho que fosse gostar mais, e durante esse meio tempo, como tive um contato maior com as artes marciais, foi quando o Weder me fez o convite para integrar a equipe de MMA, em uma categoria que não tinha tantas mulheres, aliás, o MMA Feminino estava começando a estourar. Comecei os treinos, e dali para frente foi só o que fiz da minha vida.
Jornal do Sudoeste: Então, decidiu se especializar?
C.G.R.: Sim. Foi quando busquei o curso de Educação Física. O maior suporte que minha mãe me dava, mesmo não estando tão presente por conta do trabalho, era esse incentivo ao estudo, para sempre corrermos atrás. Não tínhamos muito dinheiro, mas o pouco que sobrava, investíamos na nossa educação. E eu sempre me cobrei muito em relação aos estudos. Naquele momento, como vi que era o que eu gostava e me fazia bem, fui atrás de estudar algo que estivesse próximo, então optei pela Educação Física. Logo no começo do curso consegui estágios, comecei a entender melhor sobre programas de treinamento, fisiologia, e nunca deixei de treinar, era realmente uma vida de atleta e eu vivia em função disto. Minha primeira luta profissional foi em 2015, inclusive fora da minha categoria e, mesmo perdendo, foi uma ótima luta. Concomitante a isto, passei a dar aula para crianças.
Jornal do Sudoeste: Nesse processo você conheceu pessoas importantes, como foi isso?
C.G.R.: Sim. Até 2017 eu estava ligada a uma equipe, mas por razões pessoais me deliguei, e durante um tempo fiquei sem rumo porque por mais que eu trabalhasse com isso, se você não tem um agente para “te vender” é muito difícil o processo. Em meados daquele ano conheci o Sérgio Curva, que hoje mora na Austrália, e dava aulas na mesma academia em que eu trabalhava. Ele me incentivou muito e me deu muito suporte. Voltar a lutar é sempre uma questão, principalmente se você fica um tempo parado. Então ele marcou uma luta de Muay Thai para mim, mas no dia passei muito mal. Não respondi da forma que eu acreditei que responderia. Depois de duas semanas daquela luta eu descobri que estava grávida.
Jornal do Sudoeste: E como você encarou tudo isso?
C.G.R.: A um primeiro momento foi um baque, porque até então eu estava tentando me reestruturar. Primeiro veio o susto, e até então eu estava por minha conta no mundo, surgia uma oportunidade de participar de evento qualquer, eu colocava a mochila nas costas e ia, mas agora com filho me veio a pergunta “e agora?”. Todavia, tive total suporte do meu marido, na época meu namorado, e esse primeiro baque da notícia quem aguentou foi ele, porque até então eu estava perdida. Eu não sabia como dar a notícia, e não tive coragem de ver o resultado, quem viu primeiro foi ele, e ficou muito feliz. Recordo-me que cheguei a pensar que havia dado negativo o exame, e não, a alegria dele era justamente porque seria pai. Passei por todo o processo da gravidez, na época a dona da academia onde eu estagiava, a Patrícia, me deu total suporte, e sou muito grata a isto. Quando ele nasceu eu voltei a trabalhar, mas até então pensei que seria impossível treinar em alto rendimento e dar conta de cuidar de uma criança com todas as responsabilidades.
Jornal do Sudoeste: Quanto tempo afastada das competições?
C.G.R.: Na realidade ainda estou, voltei apenas com as lutas de Muay Thai. Em 2019 conheci outra pessoa sensacional, o Fabiano Ferreira, de Mococa, que tem uma equipe muito grande e ligada ao Muay Thai, foi nesse momento que minha história com este esporte começou a acontecer. Até então, achei que gostasse do Judô, mas me descobri apaixonada pelas tradições e cultura do povo tailandês, de onde o Muay Thay é originário. Fabiano é uma pessoa extremamente humilde e muito presente e, mesmo em meio esta pandemia, sempre manda mensagem para saber como estão as coisas, como está a família, foi ele que me redirecionou. Até então, depois que fui mãe, achei que seria apenas professora, mas essa chama se reacendeu. Em 2019 voltei a lutar e tomei uma decisão importante, que foi trabalhar apenas Muay Thai e não mais com outras modalidades.
Jornal do Sudoeste: E como foi esse processo?
C.G.R.: Eu sabia que não conseguiria me manter financeiramente trabalhando apenas com lutas, foi então que busquei fazer um curso de outra área de que gosto muito, que é Design Gráfico. Quando terminei o curso, comecei a fazer diversos freelances e, com este trabalho, complementar minha renda. Conversei com as pessoas da Academia com quem trabalhava a época, expliquei que queria trabalhar apenas com lutas, e continuei com as turmas de Muay Thai e Judô, até estourar a pandemia. Diante disto, fiquei sem dar aula e sem conseguir fazer trabalhados gráficos porque estava tudo fechado.
Jornal do Sudoeste: Como foi essa questão da pandemia para vocês da área desportista?
C.G.R.: Não tivemos nenhum suporte, apenas alguns que não trabalhavam registrado receberam auxílio emergencial e foi uma situação muito triste porque muitos ligados a esta área faliram. Vi muitos professores de Educação Física, com anos de experiência, trabalharem fazendo frete de puxar entulho de terreno. Foi muito difícil, principalmente os três primeiros meses. Graças a Deus, eu ainda pude contar com o suporte do meu marido, porque se fosse apenas eu não saberia do que seria de mim. Foi uma das áreas, assim como a das artes, mais afetadas porque nosso sustendo depende desse contato físico, dessa aglomeração.
Jornal do Sudoeste: Como você lidou com o isolamento?
C.G.R.: Achei que fosse ficar doida por estar parada, então decidi fazer cursos online. Foi nesse momento que me aprofundei nas raízes do Muay Thai, e descobri uma vertente que até então não conhecia, uma vez que o esporte no Brasil chegou por meio dos parcos conhecimentos que aqueles que viajavam para fora conseguiam trazer para cá. Hoje falamos em Muay Thai tradicional, apesar de haver apenas um Muay Thai, que é um esporte mile-nar, para diferenciar daquele que aprendemos do Muay Thai que é realmente praticado na Tailândia. Fiz diversos cursos nesse sentido com pessoas renomadas e que estão aí formando atletas multicampeões. E foi o que decidi fazer: ser reconhecida por ensinar o Muay Thai que é praticado na Tailândia. Estudar me manteve ativa.
Jornal do Sudoeste: A partir daí foram surgindo novos caminhos, certo?
C.G.R.: Sim. Deus coloca as pessoas na minha vida nos momentos certos. Foi quando conheci a Cláudia Pimenta, do Espaço Luz, até então ela estava com o projeto de criar esse espaço, e me fez o convite para atender alguns alunos, respeitando todas essas questões impostas pelo período pandêmico. Foi o que me tirou daquela sensação de não ter para onde ir e me redirecionou para o meu caminho. Eu sabia que era capaz, e acredito muito no que eu faço, então não importava se eram uma ou duas pessoas para ensinar, era o que eu gostava de fazer e sou muito grata à Cláudia por ter me dado a oportunidade de enxergar isso. E quando as coisas estão ruins, a gente tende a começar a buscar alternativas para sobreviver, a ver vagas de emprego que não temos a menor vocação, porque as contas continuam chegando... Tudo na vida é oportunidade, e foi graças a essa oportunidade que tive contato com a Tia Marize Marques, da Academia Físico e Forma, e que também foi outra pessoa sensacional na minha vida. Ela me ofereceu uma parceria que até então eu não tive de ninguém e me oportunizou trabalhar da forma que sempre quis. Diante dito, tem dois meses que eu abri a minha própria empresa e montei a minha equipe, que está muito melhor do que eu imaginei que pudesse estar neste início. Estou por minha conta, mas ainda tenho o suporte técnico do Fabiano, que gradua os meus alunos e me oferece a assistência de que preciso.
Jornal do Sudoeste: E como é ser mulher e está ligada a um esporte de luta dito “masculino”? Já sofreu preconceito por isso?
C.G.R.: Muito. Desde assédio, que sempre acontecia, até mesmo questionamento sobre minha sexualidade, que é algo que ninguém tem nada a ver com isso, mas o que mais incomoda é a dúvida sobre a minha capacidade. Isso não parte tanto das mulheres, acho até que por uma questão de sororidade, mas por parte dos meninos e que preciso ficar provando o tempo todo que eu sou capaz de dar aulas para um homem. O primeiro impacto que eles têm quando vão conhecer a equipe é este: o treinador é uma mulher. É complicado, mas essa visão tem melhorado aos poucos graças a mídia que tem colocado em evidência grandes nomes femininos do MMA e outros esporte. Todavia, o homem que é machista, ele nunca vai aceitar uma mulher em uma posição de superioridade ensinando um esporte que é teoricamente mais masculino que feminino. Mas desde criança, nunca dei bola para essas questões.
Jornal do Sudoeste: Co-mo é educar um menino para ir contra esses preconceitos?
C.G.R.: Digo muito que é a grande oportunidade que tenho de criar um ser humano como os quais eu gostaria de conviver, e vou tentar passar isso para ele. Se você quer ensinar algo, a primeira coisa é o exemplo, se você tem o exemplo, as chances de dar errado é muito menor. Desde o momento que você se propõe a ser um ser humano decente, as coisas mudam. Um homem decente dificilmente será um homem machista. Eu busco passar para ele questões importantes como o respeito e, principalmente, questões sociais que colocam a mulher em dificuldade, não no sentindo de que somos vítimas, mas que a dificuldade existe. Se ele for alguém para ajudar a combater isso, vai ser um ser humano melhor, e é o que espero. Por isso busco ser um exemplo, posso até não deixar nada material, mas se tiver mudado minimamente a vida de alguém, já terá valido a pena. Por isso que digo: o esporte é uma ferramenta de transformação, e da mesma forma que mudou a minha, pode mudar a dos outros.
Jornal do Sudoeste: Qual a mensagem que deixa para nossos leitores?
C.G.R.: Que o erro, as escolhas erradas, nossas decisões, maus desempenhos, nada mais é que a oportunidade de se fazer tudo com mais inteligência. O passado, as coisas que deram errado, é uma tela que temos acesso e podemos analisar para tentar não os repetir. E não se deixar abater, a vida é um eterno não deixar abater-se. É acordar com alegria, porque ninguém é obrigado a conviver com uma pessoa infeliz, e mesmo quando nos sentimentos assim, infeliz, insatisfeitos, é neste momento que devemos parar para refletir e criar novos projetos.
Jornal do Sudoeste: Qual é o balanço dessa trajetória?
C.G.R.: Que sou muito feliz e realizada. Conquistei coisa que quando criança, jamais pensei que teria acesso. Conheci pessoas incríveis e que mudaram a minha história e sou muito grata a todas elas. Aprendi muito. E estou em constante busca por crescimento, e não é material. Digo que vou ser uma pessoa realizada quando eu olhar para trás e ver a quantidade de vida que impactei. É uma reflexão que veio, principalmente, nesta pan-demia: de olhar para mim e perceber qual é o meu papel na sociedade. O balanço é esse: apesar dos pesares, é ser feliz e buscar evoluir por meio da educação, do conhecimento e tentar transformar algumas vidas, mesmo que minimamente, por meio de um sorriso com o meu trabalho... E, por fim, ser uma boa mãe e uma referência para minha família.