ELE por ELE

José Aparecido Marques

Por: Reynaldo Formaggio | Categoria: Entretenimento | 09-05-2021 10:07 | 1667
José Aparecido Marques
José Aparecido Marques Foto: Arquivo Pessoal

De todos os dons que recebemos, o livre arbítrio certamente é dos mais preciosos. Pelas escolhas que fazemos, caminhos que optamos e situações apresentadas, muitas vezes nos deparamos com grandes dilemas e a "luz no fim do túnel" parece não existir. Pois aos 53 anos, José Aparecido Marques é prova inconteste de que quando se quer, realmente nada é impossível. Natural de Alfredo Marcondes, pequena cidade paulista próxima à Presidente Prudente, sua história de vida é uma grande lição de superação. Desiludido, chegou a viver nas ruas e hoje, com sua dignidade restaurada, pode se considerar um vencedor. Zé, como é conhecido, generosamente abre o coração, nos conta sobre as pedras que enfrentou pelo caminho, as conquistas que o tornaram um ser humano melhor e deixa uma mensagem de fé, otimismo e esperança.

José, como foi sua infância?
Cresci na zona rural. Quando nasci, minha mãe tinha dois filhos e estava separada. No seu novo casamento vieram mais sete irmãos. Trabalhávamos desde cedo e éramos explorados pelo meu padrasto, por esta razão saí de casa aos doze para treze anos. Fui morar com outra família, um casal de portugueses muito ricos que não tinha filhos, não me adaptei e passei por outra família, depois outra e mais outra... Foram quatro famílias diferentes até meus vinte anos quando decidi viver sozinho.

Quando começou a trabalhar?
Comecei a trabalhar e também a beber muito cedo. Aos treze anos já dirigia trator, caminhão, trabalhava pesado e também bebia muito. Aos vinte arrumei emprego de cobrador de ônibus em Presidente Prudente e logo me casei.

E sobre a família que constituiu?
Com o nascimento do meu filho, diminuí a bebida pois tinha que ser responsável. Saí da empresa de ônibus e durante cinco anos trabalhei em uma empresa de eletrodomésticos. Nessa fase “aumentei a dose”. Não me mantinha em serviço nenhum. Recebi nova oportunidade na mesma empresa de ônibus, mas não fiquei mais do que 10 meses e pedi demissão. Minha esposa pegou as coisas, meu filho e partiu.  Perdi o emprego, a família e a dignidade.

Como foi parar nas ruas? E como veio para Paraíso?
Bebia para dormir e acordava para beber. Fiquei internado em um sanatório para tratamento por 101 dias. Por duas vezes saí, bebi e retornei. Voltei pra casa da minha mãe, mas por causa da bebida, o relacionamento com meus irmãos não deu certo. Vendi tudo que tinha; relógio, móveis, carro e fui para as ruas. Não me alimentava, por duas vezes tive coma alcóolico e fui internado em várias outras ocasiões. Foi quando arrumei um dinheirinho, resolvi entrar no primeiro ônibus e sumir dali. Cheguei em Franca só com a roupa do corpo. Fiquei em um abrigo do Estado e conheci uns nordestinos que vinham colher café em Paraíso. Vim junto com eles, mas não para trabalhar. Dormi no albergue e depois na rua. Me alimentava uma vez por dia, na refeição que o Monsenhor Hilário Pardini oferecia. Resolvi partir novamente mas mudei de ideia e pensei “se tiver que acontecer algo de bom será aqui”!

Quando deu o ‘clique’ que o fez mudar de vida?
Sempre gostei muito de criança. Certa vez na Praça da Saudade, próxima ao cemitério, uma senhora com três crianças desviou de mim. Estava sujo, barbudo, maltrapilho. Foi quando deu um “clique”. Pensava muito no filho que há anos não via e decidi que queria mudar. Conheci o Romualdo (ex-vereador) e o Juliano (hoje bispo de igreja evangélica) e fui para uma casa de acolhida que eles mantinham como projeto social. O Toninho Picirillo era vizinho a essa casa, através dele conheci a chácara de recuperação e lá fui voluntário. Já tinha experiência com trabalho em argila e passei a trabalhar com peças artesanais em madeira. No começo doávamos para as crianças e depois virou um trabalho mesmo. Quando percebi estava há oito meses sem bebida. Só saía para ir à missa. Percebi que ajudando os outros estava na verdade me ajudando. Ao ver os problemas do próximo, o meu se tornava insignificante.

Muitas vezes a população de rua é invisível aos olhos da sociedade. Na sua opinião, você que viveu na pele, o que poderia ser feito para mudar esse quadro? Ou a mudança é algo individual?
Realmente na maioria das vezes estas pessoas são invisíveis. As clínicas, casas de apoio, são muito importantes. Tem que ter condições para que a mudança ocorra e isso depende muito da saúde mental. Todo morador de rua tem uma história familiar, algo que o levou às ruas. Perde-se vínculo social, financeiro e moral. Para resgatar a dignidade é o mais difícil. A insegurança é muito grande, mas o fator determinante é querer. Se a pessoa não quiser mudar, nada vai adiantar.

Qual foi a maior dificuldade nesse processo?
Recuperar a relação com meu filho. Retornei à minha cidade e o reencontrei após sete anos. Foi um dos dias mais felizes da minha vida! A princípio a família dele resistiu, mas fui muito bem acolhido por ele e iniciamos uma relação maravilhosa. Duas vezes por ano ia visitá-lo e também minha família, já com os vínculos familiares restabelecidos. Meu filho também vinha me visitar aqui em Paraíso. Em 2017, no Dia dos Pais, veio a notícia de seu falecimento. Ele tinha 26 anos, era policial em São Paulo e foi vítima de um acidente de moto indo para o trabalho. Mas graças a Deus tive a oportunidade de resgatar nossa convivência.

Que dica daria para quem quer passar por essa transformação e não consegue?
Se aproximar de Deus, independente de religião. Os caminhos de Deus são retos, a gente que se perde nas curvas... Deixar de frequentar os lugares, controlar o vício. Para muitos, o alcoolismo não é tratado como doença. É uma vigília constante. Um dos segredos: não determinei que nunca mais beberia, é um dia após o outro. Quando se vê, passou um, dois, dez anos... Uma das piores partes que existe é o fácil acesso, começa aos poucos e quando se vê, já está tomado.

O trabalho foi importante nessa nova fase? Em que lugares trabalhou?
Quando saí da casa de acolhida, já me sentia seguro para trabalhar. Montei uma república com amigos e consegui um emprego como porteiro no Edifício Parque das Águas. Fiquei lá cerca de três anos e após essa primeira oportunidade, trabalhei em uma empresa por mais 10 anos. Também agradeço muito a minha esposa, Lucélia de Fátima Torres Marques. Na época ainda não erámos casados e seu apoio foi muito importante.

Você é um homem de fé? No que acredita? Crê que sempre há esperança?
Acredito em Deus, sem Ele a gente não consegue nada. Independente do que crê, é Deus em primeiro lugar, mas é fundamental fazer nossa parte. Com certeza sempre há esperança.

No que trabalha hoje? Tem algum hobby?
Faço diversos trabalhos em madeira: banquetas, mesinhas, brinquedos, enfeites. Tive a oportunidade de criar um porta-temperos para o Laércio do Empório da Terra. Ele me ajudou muito comprando minha primeira máquina. Fui pagando com o trabalho e até hoje forneço esta peça exclusivamente para ele. Atualmente tenho minha oficina, a nossa casa própria. Quem quiser conhecer meu trabalho pode me procurar pelo Facebook “Jose Marques”. E meu hobby é pescar!

Que balanço faz da sua trajetória? Tem algum sonho que pretende realizar?
Apesar de tudo, nunca deixei de acreditar. Valeu a pena! Começa por nós. Temos que aprender a perdoar. Sonho ver o mundo melhor para todos, políticos melhores que pensem mais no povo, que acabe a ambição e a ganância. Que todos analisem com mais carinho nossos representantes. Desejo paz, harmonia e que essa mudança comece em cada um de nós.