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Relatório da PEC 32 aprovado na Comissão Especial harmoniza 7/9, neofascismo e interesses do capital

Caso a PEC 32 seja aprovada e entre em vigor, estará sacramentado o fim dos principais dispositivos constitucionais relativos aos direitos sociais, aos direitos humanos e a pluralidade de concepções que deve caracterizar o serviço público.
Por: Redação | Categoria: Entretenimento | 09-10-2021 06:00 | 540
Foto: Reprodução

Em 23/09/21, a Comissão Especial da Reforma Administrativa aprovou, por 28 votos contra 18, o substitutivo do relator, deputado Arthur Maia (DEM-BA), à PEC 32/20. Para isso, o presidente da Câmara substituiu oito deputados do Centrão e o relator, que havia apresentado uma versão anterior retirando alguns aspectos gritantemente privatizantes. Em sua 7a versão retomou, fundamentalmente, o texto original do governo Federal, ainda mais neoliberal e coerente com a guerra cultural. Votaram a favor: Cidadania, DEM, MDB, NOVO, PL, PP, PROS, PSC, PSD, PSDB, PSL, PTB, REP. Votaram contra: AVANTE, Patriota, PC do B, PDT, PSB, PSOL, PT, PV, REDE e SDD. O artigo sustenta que a divisão partidária é muito relevante para compreender como o bloco no poder atua no contexto atual.

1.Contexto da retomada da PEC 32
Em 24 de julho de 2021, o editorial de O Globo pareceu, à primeira vista, destoar da sequência de editoriais e de colunas que expressam o ponto de vista do jornal pessimista e, de certo modo, crítico em relação aos rumos do governo Bolsonaro. O título e o excerto em destaque são autoexplicativos: “Reforma administrativa deveria ser a prioridade do governo no Congresso”, “Aprofundamento da aliança com o Centrão dá ao Planalto plena condição de aprovar projeto este ano”. O teor do editorial confirma as chamadas: pressupõe que, afinal, com a aliança formal com o Centrão, o governo poderia corrigir seu rumo, merecendo um novo crédito de confiança. A mesma mensagem pode ser encontrada, três meses antes (25 de fevereiro de 2021), no Manifesto “O Brasil precisa de mudanças. As mudanças precisam de reforma” no qual, igualmente, parte relevante das entidades empresariais sinaliza que, se efetivar as reformas, Bolsonaro pode contar com apoio de segmentos relevantes do bloco. Os partidos que aprovaram a PEC na Comissão Especial possuem inequívoca conexão com os grandes meios e com as entidades empresariais.

De certo modo, as práticas escatológicas do governo, orientadas pela guerra cultural, são funcionais, pois, com isso, os grandes meios de comunicação e aparelhos privados de hegemonia podem bater forte no governo, enfraquecendo-o, exigindo, como no teor do editorial do Globo que abre este texto, pautas “racionais”, “construtivas”, “civilizadas” a exemplo do avanço nas contrarreformas demandadas pelo andar de cima, ressignificadas como uma agenda “em prol do Brasil” capaz de propiciar crescimento, empregos e assim por diante. Anunciam ainda a disposição de manter apoio “vigilante” ao governo, resguardando um certo distanciamento com o processo em curso de fascistização.

É justamente nesse contexto de imensa tensão, conflitos e revezes em relação ao alcance do 7/9 que lideranças e intelectuais orgânicos do andar de cima estão sinalizando um maior afastamento em relação ao governo, mas não uma ruptura explícita e politicamente assumida. Este modo viperino de atuação é do feitio dos bancos que, em geral, atuam discretamente.

Relevantes frações burguesas criticam a prevalência da agenda da guerra cultural, em detrimento da agenda neoliberal extrema que, afinal, motivou o golpe que o Centrão e o lavajatismo, em sintonia com o capital monopolista sob dominância financeira, efetivaram em 2016. De fato, existe uma acentuada redução no ritmo e no profissionalismo das medidas para suprimir os direitos sociais da Carta de 1988, em favor da agenda da guerra cultural, gerando insatisfação no bloco no poder.

Buscando reaglutinar as possíveis dissidências no andar de cima, Bolsonaro e o Centrão reafirmam a disposição de intensificar a desconstituição da Constituição, avançando, de modo ousado, por meio da PEC 32. Com isso, Bolsonaro pretende sincronizar a fascistização em curso com o apoio do andar de cima, almejando estancar dissensões e agregar apoios entre os setores dominantes: a radicalidade da 7a versão do relator corrobora a proposição.

No art. 37, caput, foram introduzidos, entre outros, três novos princípios que tornam o Estado desprovido de democracia: ‘imparcialidade’, ‘unidade’ e ‘coordenação’. As finalidades são apresentadas na Exposição de Motivos (E.M.):

O texto é claro: o agente público (a grande maioria não será mais constituída por servidores, mas por empregados públicos) não pode realizar escolhas éticas. Como pode ser visto a partir dos dois outros princípios, o agente público obedece, cumpre determinações e não pode recontextualizar as prescrições estatais. Neste prisma, o fim da estabilidade da imensa maioria da força de trabalho no âmbito da Administração Pública é um ato ao mesmo tempo econômico e político. Caso o agente público não se coadune com as prescrições, sua avaliação será negativa, motivo suficiente para a demissão do trabalhador, conforme estabelecido na PEC 32.

O princípio da “unidade” é explicado na E.M.:

Pelo princípio da unidade entende-se que quando um agente público está atuando, qualquer que seja a matéria, o momento ou o lugar, sua atuação somente será legítima se estiver dirigida a alcançar as finalidades da Administração. (…) A divisão da Administração em seus mais diversos níveis, estruturas e funções se produz apenas para lograr uma divisão racional do trabalho, dar luz à repartição de competências, mas todos esses níveis, estruturas e funções devem atuar guiados pelos mesmos fundamentos, com as mesmas finalidades e pelos mesmos princípios (…), formando um todo harmônico e coerente. (destaques RL)

O terceiro princípio incluído no caput do art. 37, consolida a concepção de Estado pretendida:

O princípio da coordenação visa a entrosar as atividades da Administração, de modo a evitar (…) a divergência de soluções e outros males característicos de uma burocracia fragmentada. Coordenar é, portanto, harmonizar todas as atividades da Administração, submetendo-se ao que foi planejado (…). De aplicação permanente, a coordenação impõe-se a todos os níveis e poderes da Administração (em sentido amplo), obrigando-a a se articular de modo mais orgânico, inclusive entre os órgãos dos diversos níveis da federação. (destaque RL)

A perspectiva de um Estado orgânico é perseverada na versão aprovada hipertrofiando as prerrogativas presidenciais. Coerente com a concepção, a PEC 32 atribui ao presidente o poder de, por meio de decretos, moldar o Estado aos princípios orgânicos do Estado. Com a PEC 32, o artigo 84, VI, da Constituição é substantivamente alterado.

Embora explícito no texto, é pedagógico ressaltar que a PEC permite que o Presidente, por meio de decreto, portanto, por ato monocrático, possa criar, fundir e extinguir entidades da administração pública autárquica e fundacional. É o que Bolsonaro está fazendo ao desmembrar Institutos Federais de Educação Tecnológica para ampliar sua bancada de reitores. Pela PEC, um Presidente pode extinguir universidades, fundir instituições, alterar cargos públicos efetivos e até mesmo suas atribuições. Todas as instituições críticas em relação ao governo poderão ser remodeladas em função da concepção de planejamento e de Estado do Presidente que passa a gozar de um poder hipertrofiado para moldar o “seu” Estado orgânico. Mussolini, Hitler, Salazar, Franco assim conceberam o Estado e o poder do líder supremo. Todas essas prerrogativas concedidas ao Presidente resultam da agenda da guerra cultural: o Estado torna-se um aparato de casamatas para avançar na reforma moral, cultural, religiosa e educacional em favor dos “verdadeiros” “valores” do povo.

O objetivo de instituir o Estado subsidiário é o aceno ao bloco de poder de que, com a mudança constitucional, poderá atuar no fornecimento da educação, saúde, previdência, assistência social e mesmo de atividades como fiscalização, normatização e regulação. Todas as atividades tidas como não exclusivas poderão ser transferidas e executadas pelo setor privado-mercantil, escancarando a transferência do fundo público para os agentes do capital.

A grande força da PEC 32 decorre do fato de que é uma nova mudança constitucional já lastreada por mudanças anteriores, especificamente: a EC 95 que, ao discriminar, congelar e reduzir os gastos primários, criou as condições para que os neoliberais e os agentes da guerra cultural pudessem atacar os gastos não discricionários, especialmente pessoal, tema crucial não abordado no presente texto, mas que serve de amálgama para todas as medidas aqui discutidas; a EC 109, que estabeleceu que sempre que as despesas primárias obrigatórias alcançarem 95%, uma trava é acionada, exigindo cortes nos gastos obrigatórios; a PEC 32 coroa o processo, pois permite: fortes cortes nos gastos com pessoal, pois os contratos serão flexíveis, vulneráveis e, para a grande maioria, sem estabilidade (excetuando as atividades exclusivas de Estado); fusões e extinções de órgãos públicos a bel prazer presidencial e, finalmente, a contratação de entes privados para fornecerem o que era atividade do serviço público.

Frente de esquerda
A análise, ainda que parcial e preliminar, permite concluir que a construção da frente de esquerda e democrática, imperiosa e estratégica para a harmonização da democracia política com a democracia econômica, terá que incluir com centralidade e resolutividade o enfrentamento, entre outros, da tríade: EC 95, EC 109 e PEC 32.

Caso a PEC 32 seja aprovada e entre em vigor, estará sacramentado o fim dos principais dispositivos constitucionais relativos aos direitos sociais, aos direitos humanos e a pluralidade de concepções que deve caracterizar o serviço público. Permitir que a extrema direita consolide o Estado orgânico é um risco alto demais para a democracia no Brasil. A conclusão, por conseguinte, é: toda prioridade para barrar a aprovação dessa mudança constitucional comprometida com o fascismo e com o fim da dimensão social do Estado.
* Roberto Leher é biólogo, pedagogo, professor e ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Fonte: Carta Maior