Aos 50 anos o paraisense João Roberto Nogueira é um vencedor. Tranquilo, ponderado e consciente, com muita perseverança venceu obstáculos e superou preconceitos, tornando-se profissional bem sucedido e cidadão respeitado. Pai orgulhoso de uma jovem de 23 anos, Thais Caroline é seu maior tesouro e herança. Desde 1989 no Jornal do Sudoeste, João Roberto passa a entrevistado, abre seu coração, rememora sua trajetória e expressa opinião sobre temas delicados e importantes neste Dia da Consciência Negra.
De onde vem o João Roberto? Como este lugar de pertencimento reverbera em você?
Sou o segundo de cinco filhos de João Antônio Nogueira (in memoriam) e Conceição Aparecida Nogueira. Nasci em uma família humilde da Vila Mariana. Meu pai foi pedreiro e trabalhador rural; minha mãe, do lar. Meus avós, tios e tias também tiveram esta origem simples e foram deles as referências que herdei e que são as pilastras dos valores que sustentam a minha vida. Ter nascido nesta cidade é para mim motivo de muito orgulho, minha terra querida, meu Paraíso. Desde que nasci até os 42 anos, a Vila Mariana foi o local onde cresci. Guardo por este lugar um carinho e amor intensos, pois ali fiz e tenho grandes amigos, iniciei meus estudos e a construção do que e quem sou.
Qual a lembrança mais marcante do tempo de escola?
São várias as recordações. Desde as primeiras professoras, Dona Neuza, do prezinho; nos anos iniciais, Terezinha de Pádua, Márcia de Belo, a diretora Cilcéia Spósito Rodrigues, entre outras pessoas que me ensinaram as primeiras letras e deram conselhos para a vida que os guardo até hoje.
20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Por que este dia ainda deve existir?
É uma data para ser lembrada, pelos méritos de Zumbi dos Palmares e sua causa. Infelizmente o que temos hoje é apenas mais um feriado. Carecemos de algo que justifique e motive a celebração, sem imposição. Culturalmente a maioria das pessoas, principalmente entre nós negros, não sabe o que se comemora. Desnecessário seria ter um dia exclusivo para falar sobre os valores das pessoas negras e os seus feitos, se assim fosse algo constante. Nos outros dias são discriminados e continuam à margem da sociedade, salvo poucas exceções.
Durante alguns anos tivemos a SECON – Semana da Consciência Negra, destacando os valores artísticos, culturais, sociais e jogando luz sobre questões importantes ao debate. Sente falta de iniciativas similares?
Foi um trabalho valoroso encabeçado pelo Adriano Rosa, o Walter Martins, o Ilson Aparecido e tantos outros que compunham a comissão e que fizeram história neste sentido. São baluartes. Uma pena que foram vencidos pelo cansaço do trabalho pela causa. Tive a honra de participar fazendo cobertura, de ser homenageado e sou grato pelo que fizeram. Já é hora de retomar, chamar para a luta aqueles que quiserem prosseguir, renovar com quem mais quiser se achegar e dar continuidade ao trabalho de resgate e valorização das pessoas por suas histórias de vida, pelo que fizeram e fazem na nossa sociedade.
A cada dez jovens assassinados no Brasil, oito são negros. O racismo é estrutural? Faltam políticas públicas de inclusão?
Mesmo depois da abolição da escravatura, onde os negros se tornaram ‘livres’, ainda assim não haviam garantias de moradia, trabalho, acesso aos benefícios que antes não se tinha por direito. À figura dos escravos e seus descendentes restou a imagem ligada ao vadio, subalterno e o sujo. O trabalho pesado, as árduas funções e as piores remunerações foi o que lhes restaram. Mesmo na ‘liberdade’ a pessoa negra ainda continua a viver à margem da sociedade. Os avanços foram poucos e ainda há muito do que se conscien-tizar e cabe ao próprio negro procurar se valorizar e conquistar o seu espaço. Tem que procurar se fazer por onde e para isso princípios como dignidade, honestidade, força de vontade, entre outros requisitos, são fundamentais para a busca de seu espaço, sem querer passar por cima de quem quer que seja. A educação é essencial neste contexto, quem tem conhecimento tem maior capacidade e vontade de fazer valer, de influenciar, transmitir, reivindicar e colocar em prática aquilo que trará benefícios para todos aqueles que representa.
O que pensa a respeito das cotas?
É um mecanismo utilizado com o intuito de diminuir as disparidades econômicas, sociais e educacionais entre pessoas de etnias diferentes. Uma situação discutível, pois a indagação é se não poderia ser de outro jeito. As oportunidades deveriam ser iguais, mas há outras questões neste contexto e é sabido que nem todos têm as mesmas chances. Existem diversos exemplos entre aqueles que surgiram do nada e alcançaram posição de destaque. Certamente que o número é pequeno, uma minoria. Mas se o país como um todo fosse menos desigual em todos os sentidos não haveria necessidade de cotas. Não está distante o tempo em que surgirão mais subdivisões para representar outros setores e segmentos. À medida em que os grupos sociais vão surgindo e se organizando, surgem novas representações, no meu pensamento esta é uma tendência.
Além do racismo, vemos preconceito de credo, orientação sexual, misogi-nia, xenofobia e tantos outros, antes camuflados, serem “defendidos” sob alegação de liberdade de expressão. O que pensa sobre isso?
Não deveria existir nada disso, tantos rótulos e títulos para designar segmentos sociais e grupos de pessoas. Faz parte da cultura não só no Brasil, mas também mundo afora. Inicialmente ouvia-se falar de preconceito referindo-se a distinção à raça, depois a distinção homem x mulher e foram surgindo outras categorias. As discriminações estão por toda a parte seja ela religiosa, política, sociais e pelo jeito a tendência é aumentar esta segmentação. Voltando ao preconceito racial, ele é a matriz dos demais. Assistimos agora a situação se inverter quando oportuniza-se vagas de empregos exclusivas para negros, seria uma forma de discriminação diante das demais raças? As opiniões são divergentes diante dos mais variados pontos de vista e ainda não consegui chegar a um consenso para a minha opinião. Acredito que ainda vão surgir muitos outros a cada vez que uma pessoa ou grupo não se sentir representado. O mundo segue em transformação também neste sentido.
Vemos uma sociedade dividida, não apenas no Brasil, e diversas conquistas sendo retiradas ou tentativas de tolhê-las. Qual sua opinião acerca dessa cisão reinante no mundo?
Eu era menino quando ouvia falar na televisão na luta pela democracia. Muitos condenavam os regimes militares por seu rigor. As liberdades foram sendo instaladas mundo afora e as conquistas sociais se multiplicaram. Entendo como evolução. As conquistas estão aí. Acredito que a maior parte da população brasileira é fruto da democracia, muitos não têm conhecimento de fato do que foi a ditadura e a defendem com unhas e dentes. Podemos melhorar o atual regime, há muito o que fazer com a necessidade de transformações profundas na sociedade, na política, na economia, na educação e em tantos outros campos, sem necessidade de retrocessos. O aprimoramento vai do próprio cidadão e de cada pessoa. Várias experiências vêm sendo feitas ao longo do tempo e havemos de continuar aprendendo qual o caminho que nos levará aos melhores resultados. Muitas vezes nos iludimos, existem muitas miragens, precisamos abrir os olhos, ouvidos, boca e coração, sem esquecer de uma boa dose de razão para a verdadeira realidade.
Você é um profissional bem sucedido e respeitado em sua área de atuação. Como foi sua trajetória até aqui?
Como dizemos nas reuniões de família entre irmãos, tínhamos tudo para dar errado, mas felizmente trilhamos o caminho do bem. Me sinto vitorioso por chegar até aqui. Graças aos ensinamentos de meu pai, com quem pouco convivi, ele faleceu quando tinha 12 anos e à dedicação de minha mãe, dona Conceição, que fez de tudo para nos sustentar e nos encaminhar no bom caminho. A família é a base de tudo e todos contribuíram para a construção da minha história. Amigos foram inúmeros que encontrei pelo caminho, todos sabem o que fizeram por mim. A vida me apresentou oportunidades, abracei as que achei corretas e aqui estou. Nada seria sem a ajuda dos meus professores desde o início da vida escolar à universidade, gratidão eterna. O Jornal do Sudoeste foi a escola prática e me deu a oportunidade de ser e estar onde cheguei. Respeito às pessoas, instituições, solidariedade, companheirismo, dedicação, amizades fazem parte disso. Comecei entregador de jornais, lia as notícias primeiro que os destinatários assinantes da Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Gazeta Mercantil e o próprio Sudoeste. Era para ser diagramador, até exerci após cursar na Unaerp, no Jornal de Ribeirão com professor Coriolano. Mas quis o destino que fosse parar na Redação onde permaneço. Além da E.E. Comendador João Alves, E.E. Clóvis Salgado, E.E. Benedito Ferreira Calafiori, passei pelos bancos da Faceac e da Unifran, onde me formei em Administração e Jornalismo. O idealismo ficou para trás, tornou-se profissionalismo e permanece. Vieram algumas experiências na Rádio Ouro Verde, Minas Liberdade (Passos), Rádio da Família e Paraíso FM. Também aprendi muito na TV Sudoeste e na TV Paraíso, além das assessorias de Prefeitura e Câmara. Agradeço a todos pelas oportunidades.
Qual a sua regra de ouro no jornalismo?
Recordo que quando iniciei no Jornal do Sudoeste havia uma frase abaixo do cabeçalho que dizia assim: ‘Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-la’. Mesmo que a informação não nos agrade, não nos satisfaça e não seja como gostaria que fosse, não posso omiti-la. A notícia não pode ser unilateral, existe um, dois ou mais lados que sempre que possível devem ser ouvidos. Aprendi que não existe verdade absoluta e que a notícia é o recorte da realidade, mas que se deve fazê-lo procurando reproduzir os fatos o mais próximo desta realidade.
Qual a reportagem mais difícil que já realizou? E qual te deu mais orgulho?
Já atuei em todas as editorias e fui privilegiado em fazer excelentes trabalhos além daqueles que fazem parte do cotidiano. Já estive em grandes coberturas pelo Jornal do Sudoeste, em grandes eventos em Brasília, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, com reportagens memoráveis. Um destaque foi uma matéria que ajudei fazer, que saiu com a manchete na capa: ‘Por uma notícia de Belgrado’. Localizamos na Bósnia, no leste europeu, o filho de um senhor que residia aqui em Paraíso. A região onde o rapaz morava estava em guerra e o pai aqui no Brasil havia perdido contato com o filho. Naquele tempo não tinha internet, o jornal fez um trabalho junto ao consulado brasileiro, houve o rastrea-mento e conseguimos restabelecer o contato entre ambos. Eles se falaram por telefone, algo inesquecível! Foi um trabalho árduo, mas com final feliz.
Além do jornalismo, outra de suas paixões é a fotografia. Neste bicentenário de São Sebastião do Paraíso, qual seria a foto perfeita?
Tem sido um hobby de muitos anos e uma ferramenta de trabalho fundamental. Recordo-me que meu primeiro brinquedo nesta área foi uma Zenit, de fabricação russa, adquirida em Belo Horizonte pelo então jornalista Francisco Santana de Rezende, amigo do Nelson Duarte e que chegou até mim. Sou muito grato aos amigos Waldemar Francisco e Jucelino Dias, meus primeiros professores de fotografia com os quais aprendi também a revelar. Manoel Ribeiro dos Santos (Lerinho) e Antônio Vicente (Toninho Telephoto) também muito me incentivaram. Hoje vivo exercitando fotografia e sempre que posso, há um detalhe na paisagem que estou a registrar. Tem feito um bem imenso para a alma, enxergar além do que se vê. Ultimamente tenho compartilhado muito destas visões. Nestes 200 anos de Paraíso, uma imagem interessante é de um amanhecer, com o sol surgindo entre as montanhas a anunciar novo dia. Tempo de ter esperança, fé, trabalho e de construirmos juntos uma cidade cada vez melhor para todos os paraisenses e todos que aqui chegam, vislumbrando o verdadeiro Paraíso.
Você aparenta ser uma pessoa muito tranquila. O que o tira do sério?
A vida ensina e tenho feito dela um grande e constante aprendizado. Existem situações que somos capazes de mudar, outras não. Procuro me adaptar diante das circunstâncias. Intimamente já fui muito rígido comigo, com receio de ferir aos outros e a mim. Não é questão de conformismo, é realismo. Popularmente falando, não vou nadar contra a correnteza. E hoje mais vivido, me afasto da água. Não adianta dar murro em ponta de faca hora alguma, mesmo assim por algumas vezes já me espetei. Hoje mais ainda, após um segundo nascimento, vivo mais tranquilo, porque fui do lado de lá e tive a chance de voltar. Nesta nova oportunidade de vida, de renascimento, tudo tem sido muito diferente do que era antes. Contudo, tenho procurado ser uma pessoa melhor para mim e para com todos. Diante de situações que possam me tirar do sério, paro, olho, penso e respiro antes de qualquer atitude e de tomar qualquer decisão.
Como foi essa experiência de quase morte?
Ano passado enfrentei problemas de saúde em relação a pelos inflamados, o que me levou a uma pequena cirurgia. Sou paciente diabético e houve uma descompensação. Enfraquecido, fui hospitalizado tendo passado pela UPA e encaminhado à Santa Casa praticamente sem os sinais vitais. Diante do quadro os médicos disseram que não havia o que fazer. Mas graças ao doutor Flávio Diogo Vilela e equipe, fui apresentado a outro tipo de insulina e reagi, sendo restabelecido e normalizado os sinais vitais. Fiquei desacordado por horas. E foi esta a minha passagem e trânsito entre a vida e a morte, quando vi o céu, as criações de Deus, a minha vida passou como um filme diante de mim. Fui conduzido por vários caminhos, lindos jardins e depois retornei. Abri meus olhos de volta a este mundo. Gradativamente estou me recuperando, foram dias difíceis de muito aprendizado, de muito cuidado dos médicos, dos meus familiares que me apoiaram, dos amigos que estiveram comigo e permanecem até hoje. Em 22 de novembro faz exato um ano que deixei o hospital, voltei para casa e uma nova vida surgiu. Sou grato pela oportunidade que me foi concedida pelo Criador, por uma nova chance de estar aqui neste mundo, agora vivendo de forma intensa, mas com mais tranquilidade, menos correria, buscando mais entendimento e melhor preparado para o que está por vir.
Roberto, você é um homem de fé? O que te move?
Sem dúvidas é a minha fé que me sustenta. Aprendi na infância com minha avó paterna, os meus primeiros passos dentro da igreja, na capela de Nossa Senhora do Rosário, a reza do terço. Participei de grupos de jovens, de oração, sempre que posso estou na igreja e tenho uma relação intensa com Deus. Do apóstolo Paulo aos Gálatas, ele diz “não sou eu quem vivo, mas é Cristo que vive em mim”. É esta vivência do amor de Deus em mim que tento transmitir para aqueles com quem me relaciono. Procuro ser reflexo da luz de Deus, mesmo com minhas falhas, defeitos e pequenez. Da minha passagem pelo céu, tenho dito que não vi Deus, mas vi o céu e as coisas de Deus. Ao pegar o elevador de volta, ainda ecoa em meus ouvidos os dizeres, ‘volta, a sua fé te salvou’, palavras ditas por meu preceptor. Motivo ainda maior para eu acreditar em como Deus é maravilhoso pela nova chance de vida a mim concedida.