Um belo pé de tuia enfeita a porta de sua casa. Uma árvore frondosa. A natureza por sinal está presente desde os primeiros anos de Josélia Maria Martins. Criada na Fazenda Viramundo, na divisa entre São Sebastião do Paraíso e São Tomás de Aquino, Josélia cresceu em meio às brincadeiras ao lado de muitos primos e filhos de colonos. Talvez sua vocação para educadora venha deste tempo. Frondosa também é sua capacidade de acolher. Seja cuidando dos irmãos, dos alunos que passaram por suas mãos e das próprias filhas, Vitória e Sofia, Josélia é puro instinto maternal. A fé, assim como seu sorriso acolhedor, permanecem vívidos nestes 59 anos. Mas certamente sua maior vocação, como podemos conferir nesta entrevista, está em cuidar e educar.
Josélia, como foi crescer em uma fazenda? Guarda muitas recordações desse tempo?
Com certeza! Sou a mais velha de cinco irmãos, filhos de Joaquim Clodoveu Martins, mais conhecido por Quinzinho, e de Zélia Maldi. Nasci na fazenda de meu avô paterno, Veriano José Martins. A Fazenda Viramundo tinha a sede, onde eu morava, e duas subse-des. Eram muitas crianças, filhas de tios e também dos colonos que trabalhavam na fazenda, todos muito amigos. Gostava de brincar de casinha, de cuidar do jardim com minha avó, lembro do pé de manacá, de coqueiros altos com ninhos de pássaro preto. Um dos passarinhos caiu e o criei até vir para cidade. Aqui ele bateu asas e voou para a liberdade... Mas uma de minhas brincadeiras prediletas era escolinha, acho que daí já vinha minha vocação para professora. Lembro que fui para a escola um ano antes do que normalmente aceitavam, tamanha era minha vontade de aprender. Minha primeira professora foi a Lurdinha Vilas Boas. Estudávamos em classe multisseri-ada e assim foi por quatro anos. Adorava declamar e já compunha meus primeiros versos, sobre a natureza, os pássaros... Guardo muitas amizades desse tempo. Belas recordações!
E quando se deu sua vinda para a cidade e a continuidade da vida estudantil?
Fiquei quatro anos sem estudar. Queria muito vir para a cidade para continuar meus estudos e isso ocorreu aos 15 anos. Com muito apoio e incentivo consegui acompanhar a turma. Estudei no Colégio Paula Frassinetti até concluir o curso magistério. Fui muito incentivada pela professora Maria Eulina e também à leitura pela Carmem Lúcia Estre-mes, minha madrinha.
Sempre quis atuar na área da Educação? Teria outra profissão?
Até os 19 anos queria ser freira! Até que minha mãe engravidou da minha irmã caçula, a Flávia, e me senti na incumbência de ajudá-la. Por já ter uma idade mais avançada, minha mãe me disse que se algo acontecesse a ela, eu que iria criar minha irmã. Muitos até pensavam que ela era minha filha. Talvez ser freira não fosse minha real vocação. Após o magistério fiz um curso de especialização para pré-escola. Também cursei a Escola de Comércio e posteriormente me graduei em Ciências Sociais e Pedagogia, com três especializações, além de uma pós em Sociologia, tudo em Passos.
Em quais escolas atuou?
Antes de começar a trabalhar na Educação, tive uma experiência na área de vendas na Loja Indiana, do maravilhoso Sr. Edvaldo, o que me ajudou muito na comunicação, a trabalhar a timidez... Depois comecei como contratada atuando em algumas escolas, até ser aprovada em concurso do Estado. Atuei nas escolas Comendador João Alves, Com. Ana Cândida de Figueiredo, Campos do Amaral, Cel. José Cândido e também no Colégio Paula Frassinetti e Escola de Comércio São Sebastião, onde havia estudado. Além, é claro, nos 23 anos na Escola de Educação Especial Mariana Marques, junto à APAE.
Certamente uma das experiências mais marcantes de sua trajetória foi atuar na APAE, certo? O que você aprendeu de mais valioso lá?
Entramos achando que vamos ensinar, a gente contribui, mas aprendemos muito mais. Confesso que nos três primeiros meses foi um choque. Chorava muito e contei com o valioso apoio psicológico da Marilena Westin e da Maria Helena Marques. Ali é uma escola de vida! Tive experiência em todos os setores: bebês, alfabetização, oficinas, artes e AVD - atividades da vida diária, que era minha alegria! Ensinávamos afazeres da casa, higiene, o objetivo é proporcionar à criança condições para que, dentro de suas potencialidades, possa formar hábitos de autossuficiência que lhe permitam participar ativamente do ambiente em que vive. Também fui vice-diretora e diretora, por duas gestões. A relação com os pais era de muito carinho e respeito, no sentido de compreendê-los e contribuir para que a relação com seus filhos seja a melhor possível. Falar em APAE é ser grata a Espir Attiê, Maciel Teófilo da Silva, Gabriel Onofre Marques, João Sinval, Odair Pimenta, José Gonçalves e tantos outros que sonharam e realizaram. Admiração imensa por todos! Pude trabalhar com uma equipe maravilhosa, e de suceder na diretoria a querida Luzia Borges, com quem aprendi tanto. Não posso deixar de destacar que na gestão do prefeito Pedro Cerize, tivemos grande apoio dele, da primeira dama Lenita, do vereador Ricci, entre outros. Conseguimos mostrar a importância da escola e da APAE para a cidade, integrá-los com a comunidade, visitamos e recebemos também diversas escolas, um trabalho em equipe maravilhoso! Recebemos 800 alunos para a Olimpíada Nacional das APAE’s e para isso tivemos também o apoio de toda comunidade, para alimentação, hospedagem e acolhida. Conseguimos reformar o campão para realizar algumas provas, foi maravilhoso! Agradeço a cada um que trabalhou comigo, com amor e respeito.
A Escola de Educação Especial Mariana Marques, que funcionava dentro da APAE, foi extinta, certo? O que pensa sobre a inclusão na Educação?
Sim, a escola foi extinta e continua a APAE. Sou a favor da inclusão. Temos que pensar e promover a inclusão na família, refletir e ajuda-las a incluir aqueles que estão excluídos dentro da próprio núcleo familiar, dos credos, templos e religiões de seus pais. Excluídos dos momentos e lugares de reuniões, festa, lazer, prazer. Até da rua são excluídos por falta de acesso às calçadas decentes, para transitar com uma bengala, cadeira de rodas, andador... Enfim, incluir vai muito além da escola. Acredito que temos que olhar o ser humano como um todo. Creio no desenvolvimento das pessoas. Dizia para pais, professores, comunidade, enquanto na função de diretora: enquanto tiver um sopro de vida, em tudo e todos temos que ter esperança, e investir, trabalhar, oferecer o melhor para evoluirmos sempre. Quanto às dificuldades, estamos aqui para superá-las. Muitas vezes as dificuldades são dos chamados “normais”. Vi a inclusão acontecer no Brasil a toque de caixa, como tudo aqui. Deitamos com uma lei e amanhecemos com outra. Já se falava há anos na inclusão, mas não se preocupam em ofertar uma escola adaptada, com o mínimo de recursos físicos e humanos para receber as diversas deficiências. Vi colegas desesperadas se perguntando o que fazer com alguns alunos. Ele não ouve, não fala, como vou comunicar com ele? Não havia conhecimento básico de libras e nosso aluno dominava essa linguagem que aprendeu dentro da Escola Especial. Garotos espertos, inteligentes, capazes de progredir e concluir os estudos. Então, penso que temos que melhorar cada vez mais as escolas a nível físico/estrutural, com materiais didáticos adequados, os recursos humanos capacitados para atender bem, com um serviço de qualidade a todos com deficiência que ali chegarem. Não compreendia levarem alunos meus, na época, 2013, 2014, com problemas gravíssimos, crianças que corriam risco de vida o tempo todo, para escolas comuns, sem o mínimo de condições físicas, materiais, paramédicos e professores capacitados como tínhamos disponíveis. Essas crianças foram colocadas em salas e ficaram no fundo, ou em cantos da sala com outro profissional, alienados ao que estava acontecendo por suas condições físicas e neurológicas. Meu amor e preocupação foram imensos na época... Pergunto: todos devem ir para as escolas comuns? Elas estão preparadas? Se responsabilizam por toda e qualquer criança, jovem? Oferecem um serviço de qualidade? Atendem todas as necessidades? Oito anos depois, infelizmente, já perdemos várias dessas crianças, portanto, eram muito graves os quadros delas. E elas foram expostas ou então permaneceram na Escola Especial/APAE por ordem judicial. E quantos não conseguiram permanecer nas escolas regulares e evadiram na época! O direito tem que vir acompanhado de qualidade, competência, eficiência e eficácia dos diversos serviços oferecidos, para dar condições de envolvimento e desenvolvimento da pessoa com deficiência. Temos que atender suas necessidades para ser inclusão!
Nos conte sobre a família que constituiu. Como é exercer a maternidade?
Me casei em 2000 e tenho duas filhas maravilhosas, a Vitória Martins Paixão, que está com 19 anos, e a Sofia Martins Paixão, com 16. Ambas têm aptidão para as artes, o desenho em especial, e pensam em seguir esta vocação. Achava que não seria mãe. Até que me vi grávida, próxima dos 40 anos. Lembro que era 31 de maio e encerrávamos o mês de Maria no Colégio quando descobri a gravidez. Foi uma alegria muito grande! Já deixando a direção da APAE, escolhi trabalhar com os bebês, uma vontade que já era muito grande. E nesta posição me colocava no lugar das mães que sentiam-se culpadas e até vivenciavam um luto quando seus filhos especiais nasciam. Já atuava na APAE há 12 anos e fiquei mais 11 cuidando dos bebês. Levava minhas filhas e foi uma grande oportunidade de aprendizado que elas tiveram e absorveram.
O que gosta de fazer nas horas vagas? Viagem é uma de suas paixões, certo?
Hoje consigo ler mais, gosto de bordado, crochê, artesanato em geral. Adoro cuidar das minhas plantas. Tenho cerejeira japonesa e parreira no quintal... E amo viajar! Trago conhecimento, cultura. Costumo conhecer as igrejas dos lugares que visito. Se for praia, gosto de caminhar sozinha por horas à beira do mar...
Que conselho daria para um jovem que pretende seguir na Educação hoje?
Muito estudo, perseverança e empatia. Olhar para o menino mais difícil e compreender que esse é o que mais precisa de socorro.
Depois da turbulência da pandemia, tem planos para 2022?
Olha, no começo foi difícil encarar essa pandemia, deu até uma depressão. Mas superei estes quase dois anos, também por conta de algumas crianças que acolhi em casa para auxiliá-los em seus estudos. Pude dar apoio e transformar o sentido de aprendizado, estudávamos e colhíamos frutas, brincávamos e desenhávamos. Foi uma ajuda mútua! E tenho sim planos para o próximo ano. Fui convidada por uma escola da rede particular e vou atuar em uma área que gosto muito, socio-emocional, com base na Escola da Inteligência, de Augusto Cury. E também pretendo concretizar o plano de ter meu próprio ateliê de artesanato!
Como se imagina daqui a 30 anos?
Quero estar viva (risos)! E bem, com saúde física, emocional e espiritual. Com quase 90 e viajando muito!
Você é uma mulher de fé?
Eu sou uma mulher de fé, do meu jeito. Através da observação do mundo, das religiões, com muito respeito. Sou católica, trabalhei durante muitos anos em diversos segmentos da igreja: Catequese, infantil, de jovens e adultos, Encontros de Casais com Cristo, Cursílio... Atuei nas paróquias de São Sebastião, São José e Sion. Pude dar e receber. Foi uma troca muito boa!
Josélia, qual a maior lição que aprendeu em sua caminhada?
Estou aprendendo a humildade. O humilde olha tudo com empatia, altruísmo. É um aprendizado constante. Olhar para o outro sem idolatria, como humano falho e também saber perdoar. Nossa caminhada é evolução!