“Deus concedeu-nos o dom de viver; compete-nos a nós viver bem”. Voltaire certamente ratificaria sua teoria ao conhecer nossa entrevistada. Viver nove décadas não é para todos. Completar 90 primaveras saudável, extremamente lúcida, consciente, politizada e ao mesmo tempo serena, feliz e realizada é algo ainda mais raro. Eli Ghiglino Gadêa é prova inconteste de que podemos envelhecer bem e fazer do tempo nosso maior aliado. Natural de Sant’Ana do Livramento, no Rio Grande do Sul, Eli viveu grande parte de sua vida na também cidade gaúcha de Santa Maria, passou por Rondônia e atualmente vive em São Sebastião do Paraíso, cidade que logo aprendeu a amar. Professora por vocação, mãe de três filhos, avó de 4 netos e 7 bisnetos, Eli rememora seu caminhar e, generosamente, confidencia o segredo de sua felicidade.
Eli, qual a memória mais preciosa a senhora guarda de sua infância?
Minha mãe Maria Assumpção Pereira Ghiglino, era uruguaia de Tacuarembó e sua família tinha origem espanhola. Já meu pai, Florismundo Ribeiro Ghiglino, nascido em Sant’Ana do Livramento, tinha ascendência italiana. Tive uma infância muito feliz, tenho inúmeras lembranças boas: as brincadeiras com minha única irmã, a Gessy, dois anos mais velha, que está lúcida, bem de saúde e ainda vive em Livramento; as viagens de trem com meus pais, as idas aos parques de diversões e circos, as sessões de cinema “matinês”, no cinema de Rivera (Uruguai). Minha cidade natal faz fronteira com o Uruguai, basta atravessar a praça e se está em Rivera.
O Rio Grande do Sul é um estado que valoriza muito suas tradições. Qual delas a senhora preserva?
Apesar da riqueza das tradições, nunca frequentei centros tradicionalistas. As danças e as vestimentas são belas, mas jamais dancei ou me vesti de prenda. Talvez o hábito de tomar chimarrão seja a única tradição gaúcha que mantenho.
As revoluções e o acirramento político também são muito presentes na história do Rio Grande. Se recorda de algum fato em especial que a marcou?
Tivemos mais de quatro presidentes gaúchos, sendo que dois deles foram protagonistas de momentos que não se apagam da minha memória. Nasci em fevereiro de 1931, enquanto meu pai, que era capitão da brigada militar, estava no Rio de Janeiro, comandando um destacamento, no período que chamaram Revolução de 30, mas que na verdade foi um golpe, uma vez que o presidente eleito foi impedido de tomar posse, quando teve início a Era Vargas. Quase trinta anos depois, o período marcante teve como protagonista outro presidente gaúcho, João Goulart. Vivi o Golpe de 64 e os trinta anos de Ditadura Militar, período sombrio de nossa história. Tudo era perigoso, integrantes do DOPS estavam por todos os lados, discordar ou criticar o governo era considerado crime.
Por quase 50 anos a senhora viveu um casamento muito feliz, certo? Como conheceu seu esposo? E nos conte também sobre a família que constituiu.
Eu e Waldir Júlio Bastos Gadêa fomos casados por quarenta e seis anos, uma união realmente muito feliz. Atravessamos juntos quase meio século, sempre nos amando e respeitando. Nos conhecemos em 1950, num baile de Carnaval. Eu era da corte da rainha do Clube Caixeral, Waldir, da corte do Rei Momo. Já nos conhecíamos de vista. Na primeira noite daquele Carnaval, ele foi meu par de dança. Terminamos dançando juntos por quarenta e seis anos, apesar de eu ser péssima dançarina (risos). Noivamos no ano em que me formei no Magistério, 1952. Dois anos depois nos casamos e fomos morar em Santa Maria, cidade em que Waldir já havia fixado residência, logo depois de termos noivado, por ser uma cidade maior onde poderíamos ter melhores oportunidades para construirmos uma família. Tivemos três filhos: Senaira, que é professora, hoje com 66 anos; Waldir, engenheiro, 65 anos e Leny, administradora, 52 anos. Seres humanos dos quais me orgulho muito!
O que a casa simboliza pra senhora?
Lar, local das minhas melhores lembranças, e da minha saudade. Amo minha casa em Santa Maria. Apesar de ter trabalhado fora por quase cinquenta anos, sempre me dediquei muito a manter minha casa sempre organizada, limpa e aconchegante. Foi nela que meus filhos nasceram e cresceram, onde meu marido e eu sentávamos todas os finais de tarde para ler, conversar e tomar chimarrão. Hoje um de meus bisnetos mora lá. Uma casa que também tem história, uma história de mais de cem anos, parte de uma antiga sede de fazenda. Um recorte da história de Santa Maria preservado, situado em uma das principais ruas da cidade.
Concomitante à sua vida familiar, a senhora também se dedicou por mais de três décadas ao magistério. Como foi esse período? Ainda tem contato com seus ex-alunos?
Naquela época, as mulheres não tinham muitas opções de carreira, ser professora era uma distinção. Não havia escola pública que oferecesse “ginásio” em Livramento, o que hodiernamente chamam de ensino médio, apenas duas escolas particulares. Assim, cursei Magistério, chamado antigamente de Escola “Normal”, no colégio de freiras. Lecionei por 31 anos. Construí uma carreira profissional da qual me orgulho. Em um tempo em que mulheres eram educadas para serem esposas e mães, eu trabalhava. Venho de uma família de mulheres fortes, fui educada para ser independente. E meu esposo, que sempre foi um homem vanguardista, me apoiava. Quando nos casamos, Waldir era protético e, apesar de ter uma carteira ampla de clientes, como todo profissional liberal, nos períodos de férias tinha menos trabalho, então era importante um de nós ter salário fixo. Pouco antes de nossa filha mais nova nascer, Waldir passou a técnico de microscopia eletrônica da Universidade Federal de Santa Maria, instituição em que trabalhou por vinte e dois anos, e onde nossos três filhos estudaram, além de dois netos e agora um dos bisnetos. Foi por termos duas fontes de renda que pudemos dar um padrão de vida melhor aos nossos filhos, cursos extracurriculares, como escola de francês, cursos preparatórios para vestibular... Tive inúmeras turmas, inclusive alunos com necessidades especiais (deficientes visuais, auditivos) em classes inclusivas. Amava o que fazia, era vocacionada. Magistério nunca teve reconhecimento financeiro, hoje tem ainda menos. A recompensa veio com o tempo, ao encontrar ex-alunos, hoje médicos, advogados, professores universitários, com os quais contribuí na formação. Troco mensagens pelo WhatsApp com alguns, outros me encontraram pelo Face-book. Ser reconhecida por eles e receber seu carinho me faz ter a certeza de que cumpri a minha missão. É através da educação que se faz justiça social.
Como se deu a sua vinda para São Sebastião do Paraíso? E qual sua impressão sobre a cidade?
Minha filha mais velha mora no Rio Grande do Sul, em uma cidade próxima à Argentina, o filho em Brasília, e minha filha mais nova se casou com uma moça de família daqui e veio morar em Paraíso. Apesar de estar lúcida, os filhos me convenceram a não morar sozinha em Santa Maria. Tinha morado com minha “caçula” nos dois anos anteriores, então foi natural vir morar aqui, principalmente depois de conhecer a família de minha nora, pessoas boníssimas, com valores semelhantes aos nossos. Hoje formamos uma só família. São Sebastião do Paraíso é uma cidade linda, de povo hospitaleiro, trabalhador e educado. O comércio é pujante. A região possui belezas naturais ímpares. Assim foi fácil passar a amar Paraíso!
Em pleno século XXI ainda presenciamos muitos casos de intolerância quanto à orientação sexual, credo, etnia, entre outras. O que a senhora pensa sobre esse tema? Se considera uma pessoa livre de preconceitos?
Ignorância, preconceito e intolerância sempre andaram juntos, se retroalimentam. O que importa é o caráter, não as escolhas pessoais ou a cor da pele; somos todos irmãos. Aprendi a aceitar tudo e todos com naturalidade. Não precisamos entender, mas temos obrigação de respeitar. Estamos todos nesse plano para aprendermos a respeitar e amar todos os seres, essa é a nossa missão e desafio evolutivo.
A mulher conquistou merecidamente espaços na sociedade, embora ainda exista muita desigualdade. Tendo vivido de perto muitas dessas conquistas, como enxerga essa evolução?
Foi uma evolução bastante lenta e sofrida. A mulher era considerada um ser inferior. Hoje estamos em todas as áreas de atuação, embora existam ainda muitos resquícios da sociedade patriarcal. Até bem poucos anos as mulheres eram assassinadas em legítima defesa da honra. Feminicídios acontecem todos os dias, a maioria por razões fúteis, provando que o machismo ainda existe. Um absurdo!
Atravessamos uma grave pandemia. Já havia passado por algo semelhante? Como tem lidado com isso?
Nunca, e jamais imaginei que viveria para ver algo tão horrível. Desde o início, acompanhei todas as notícias. Com 90 anos e cardíaca, sou duplamente do grupo de risco. Não temo a morte, mas gosto de viver. Penso que temos que ter responsabilidade com a nossa vida e ainda mais com a vida dos outros. Minha preocupação maior não é comigo, mas com meus filhos, netos e familiares. Fizemos quarentena. Passamos a higienizar praticamente tudo que entra em casa. Usamos habitualmente álcool em gel, máscaras e distanciamento, quando fora de casa. Minha filha, minha nora e eu já tomamos a dose de reforço, assim, estamos mais tranquilas, mas ainda cautelosas. A pandemia ainda não acabou, há uma cepa nova chegando gradativamente, da qual pouco se sabe. Com negacionismo e sem vacinação em massa, estaremos a mercê de novas cepas. Minha nora perdeu o único cunhado em abril, uma pessoa a quem queríamos muito bem. Foi um choque. Também perdemos amigos e conhecidos, são dores indescritíveis.
Quais seus hobbies?
Divido meu tempo entre leitura, bordado, crochê, programas de decoração e de viagens – um dia visito o Japão, em outro conheço a Itália, Portugal, França, pelos vídeos do YouTube. Assim, passo viajando (risos), descobrindo novas culturas, apreciando o que cada lugar possui. Internet é algo fantástico! A programação de televisão, mesmo de canais pagos, não me é tão atrativa.
Tendo vivido bem e passado por muitas experiências marcantes, se sente uma mulher feliz e realizada?
Completamente! Tive uma infância e adolescência feliz ao lado de meus pais e de minha irmã. Vivi por quase cinquenta anos com o amor da minha vida, com quem formei uma família linda, que me dá muitas alegrias. Realizei-me profissionalmente. Tenho saúde, independência financeira. Amigos amorosos no Sul, em Rondônia, Brasília e aqui. Vivo rodeada de pessoas boas, honestas, carinhosas e atenciosas. Estou lúcida. Tenho uma fé inabalável... O que mais se pode querer da existência?
Eli, qual o seu segredo de felicidade?
O segredo da felicidade, do meu ponto de vista, é aprender a ouvir, e a calar. Não interferir na vida de ninguém, nem na dos filhos. Compartilhar, estender a mão a quem precise. Ser honesto e despretensioso. Contemplar a natureza e compreender que somos parte dela e estamos aqui apenas de passagem. E, principalmente, sermos gratos. Gratos pela possibilidade de existir.