Entre diversos valores paraisenses espalhados pelo mundo, destacamos nessa edição a trajetória da historiadora Semíramis Corsi. Filha e sobrinha de grandes educadoras, Semíramis vem trilhando uma consistente trajetória nos meios acadêmicos. Apaixonada por história, artes, gatos, os amigos e a carreira acadêmica, atualmente a historiadora se dedica à docência na Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Também profundamente ligada à cidade natal, Semíramis se recorda com carinho dos saudosos avós maternos, o operário Geraldo Corsi e a costureira Teresinha dos Reis Corsi. Com muitos projetos e sonhos a realizar, consciente de seu papel e da importância da Educação como ferramenta de transformação, Semíramis celebra nesta entrevista seus bem vividos 40 anos, comemorados neste 4 de fevereiro.
Semíramis, sendo filha e sobrinha de grandes professoras, Ruth e Regina Corsi a inspiraram a seguir esta carreira? Mais alguém te influenciou?
Certamente minha mãe e minha tia foram as minhas maiores influências para seguir a carreira docente e também para me tornar uma pesquisadora. Ambas têm muita vontade de aprender e de ensinar, o que fez despertar em mim o gosto pelos livros, pelo conhecimento e pela escrita. Praticamente fui criada dentro de uma escola, a Escola Estadual Paula Frassinetti. Fazia as estantes da biblioteca escolar de andares da casa das minhas bonecas e os livros de paredes, ajudava as professoras a mimeografarem as provas e, claro, brincava de professora nas salas de aula. O ambiente escolar, minha mãe e tia professoras e o contato constante que elas me proporcionaram com vários professores e muitos livros, me inspiraram seguir a carreira que tenho hoje. O gosto pela História veio também do meu nono Geraldo, que me levava todos os domingos ao cemitério. Pode parecer sombrio, mas ali, a cada lápide que passávamos, ele me dava aulas sobre as pessoas que viveram um dia em Paraíso. Meu nono era um homem simples, mas adorava contar histórias.
Grande parte de sua formação foi cursada em escola pública, certo? Como avalia a educação pública atualmente?
A educação pública, seja básica ou superior, é um dos bens maiores de um país, é o que torna possível a democratização do saber. Tenho muito orgulho de ter estudado em escolas públicas em minha infância, na Escola Municipal Interventor Noraldino Lima, que à época era estatual, na Escola Estadual Paula Frassi-netti, e depois na faculdade, na Unesp de Franca. Orgulha-me também, hoje, ser professora e pesquisadora de uma universidade pública. Foi no ensino público que conheci a realidade da maior parte dos brasileiros e brasileiras. Infelizmente há um projeto em curso para desmonte do ensino público superior, temos sofrido um sucateamento de verbas enorme nos últimos anos. Houve um avanço considerável no começo dos anos 2000 na educação superior pública, com um grande investimento em bolsas e projetos de pesquisa e criação de novas universidades públicas ou novos campi de universidades já existentes, mas o cenário mudou muito nos últimos anos. As pessoas precisam compreender que a pesquisa de qualidade no Brasil acontece substancialmente dentro das universidades públicas ou em institutos ligados a elas e, por isso, elas devem ser vistas como um bem a ser preservado, pelo qual precisamos lutar.
Qual sua formação acadêmica?
Sou graduada (licenciada e bacharel), mestre e doutora em História pela Universidade Estadual Paulista, campus de Franca (Unesp/Franca).
Qual o principal papel de uma historiadora?
Interpretar os feitos de povos de outros tempos e culturas ou de nosso tempo presente, analisar a ação do tempo e refletir sobre a identidade e sobre nossa própria cultura a partir da perspectiva das diferenças. Também damos vozes às injustiças de forma crítica. Colaboramos, assim, com a memória em torno do passado, bem como com a reflexão de nossos contemporâneos sobre si próprios.
Sua linha de pesquisa aborda questões de magia com destaque para Apu-leio. O que a fascina neste trabalho?
Minha área de pesquisas é a História Antiga, com ênfase nos estudos sobre o Império Romano. Mas, dentro desse grande contexto histórico, minha atenção especial tem se voltado aos estudos sobre religiosidades, magia e gênero. Talvez por vir de uma família muito religiosa, embora não ortodoxa, somos espíritas e também frequentamos a Umbanda, o universo simbólico-mágico e as discussões sobre o mundo sobrenatural sempre me atraíram. Logo que comecei a pesquisar, ainda na iniciação científica na graduação, procurei compreender como os antigos romanos e romanas e outros povos que compuseram o Império Romano, como os sírios, explicaram sua existência em termos de mitos, rituais, deuses e deusas. Acho fascinante pensar que povos tão diferentes de nós deram sentidos que se afastam, mas também se aproximam, para problemas que nós também vivenciamos, como a força da natureza, a morte, o sobrenatural, o amor, os desejos mais particulares, etc.
Através de um programa do governo você teve a oportunidade de cursar parte de seu doutorado na Espanha. Como foi esta experiência?
Foi sensacional! Acho indispensável que um pesquisador em formação como eu era, ainda no doutoramento, tenha a experiência em um grande centro de pesquisas no exterior. Passei um período na Universidad de Salamanca, na Espanha, e também pude pesquisar na Bibliothèque Gernet-Glotz da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Pude dialogar com importantes pesquisadores, frequentar suas aulas e conhecer bibliotecas enormes, onde adquiri material para concluir a escrita da minha tese e que servem até hoje nas minhas pesquisas atuais e nas dos meus alunos. Tudo isso só foi possível porque naquela época, 2012-2013, tínhamos muitas bolsas de estudo para o exterior, hoje os recursos estão bem mais escassos, infelizmente.
Atualmente você é docente na Universidade Federal de Santa Maria - RS. Como foi sua trajetória até aqui?
Como docente, comecei minha carreira dando aulas em um cursinho popular criado pela minha mãe na antiga Associação dos Aposentados de Paraíso. De lá pra cá atuei em muitos lugares, com destaque para o cursinho popular GAVE, aqui em Paraíso, onde dei aulas de História e Literatura, e para o Centro Universitário Claretiano de Batatais, onde fui coordenadora do curso de História e professora dos cursos de Filosofia e História. Como pesquisadora, iniciei meus estudos trabalhando com representações de feiticeiras na obra do poeta latino Horácio. Depois realizei meu mestrado analisando a acusação de praticante de magia contra o escritor Apuleio (século II d.C.). No doutoramento, estudei a obra biográfica Vida de Apolônio de Tiana, de um escritor grego chamado Filóstrato (século III d.C.).
Em suas postagens nas redes sociais, observamos seu orgulho em relação aos trabalhos acadêmicos apresentados por seus alunos. Como é ser orientadora no Mestrado e Doutorado? Até que ponto o professor pode interferir na linha de pesquisa do aluno?
Sou muito orgulhosa dos trabalhos dos meus orientandos de Doutorado, Mestrado e Iniciação científica e, embora os estudantes que me procuram já vêm interessados na área e/ou nos temas que trabalho, costumo dar liberdade de escolha do que pesquisar para eles. Acredito que apenas estudando o que desperta nossa curiosidade e paixão somos capazes de fazer algo com mais dedicação. Aproveito para convidar os leitores do JS para conhecerem nosso trabalho através de um Podcast que desenvolvemos, o Diálogos Olimpianos, que pode ser ouvido pelo Spotify ou nos sites do Anchor, Cast Box e Youtube (Canal do GEMAM). Ali transformamos nossas pesquisas em algo mais descontraído e de fácil acesso ao público geral que gosta de História, Arqueologia, Literatura, etc.
Como pesquisadora você teve a oportunidade de publicar alguns livros. Nos conte sobre essas obras.
Publiquei quatro livros autorais e organizei sete coletâneas, com capítulos meus e de colegas pesquisadores. O primeiro livro autoral “Magia e Poder no Império Romano”, é meu trabalho de Mestrado e foi publicado pela Editora Annablume com auxílio da FAPESP, agência de fomento científico do Estado de São Paulo. O segundo livro trata-se da minha Tese de Doutorado, “Identidade Grega e Império Romano”, publicado pela Editora Appris. Os outros dois livros autorais são livros didáticos de História Antiga produzidos para o Centro Universitário Claretiano. No momento estou organizando quatro livros com colegas pesquisadores (um interdisciplinar sobre Magia e Feitiçaria, outro sobre Gênero e outros dois sobre Mulheres da Antiguidade) e estou me arriscando a escrever meu primeiro livro de literatura.
Embora vivendo fora de sua terra natal, você tem profundas raízes ligadas a São Sebastião do Paraíso, certo? O que gostaria de oferecer à cidade neste bicentenário recentemente completado?
Amo minha cidade, nela está grande parte da minha história e das pessoas que amo. Mesmo morando fora por necessidade de trabalho, faço questão de estar sempre que posso em Paraíso, inclusive ainda voto aqui, pois me sinto cidadã paraisense pra sempre. Gostaria muito que Paraíso valorizasse mais o espaço das bibliotecas públicas. Frequentei muito a Biblioteca Municipal. Me orgulharia muito vê-la cheia de crianças e jovens com suas fichas de empréstimo lotadas. Infelizmente, nossas crianças e adolescentes hoje têm lido muito pouco e passado grande parte do tempo jogando na frente de computadores e celulares. O gosto pela leitura é muito importante para a formação de cidadãos conscientes de seu papel social. Meu presente para Paraíso, que espero conseguir concretizar, está em dois projetos de publicações de livros que planejo produzir.
Você é casada com o Fernando de Figueiredo Balieiro, sociólogo e também professor universitário e pesquisador. Costumam debater sobre suas pesquisas? Compartilhar da arte de ensinar é um ponto de convergência no casamento?
Sem dúvidas compartilho com o Fernando não apenas o cotidiano de qualquer casamento, o cuidado com nossos gatos (nossas paixões!), mas também o gosto pelo conhecimento, pelo ensino e pela aprendizagem. Conversamos o tempo todo sobre política e cultura. Fernando é um homem muito inteligente e de boa formação, ele é sempre meu primeiro leitor, ainda que sejamos de áreas diferentes. Fernando estudou Literatura (Raul Pompéia) no Mestrado, Cinema (Carmem Miranda) no Doutorado e hoje trabalha com Sociologia Digital, mas ele sempre dá suas opiniões sobre meus textos e as palestras que irei proferir e eu faço o mesmo com o trabalho dele.
Saindo um pouco da seara acadêmica, você é grande apreciadora de música e arte em geral. Na sua opinião, qual o papel da arte?
O ator, escritor e dramaturgo Antonin Artaud (1896-1948) tem uma frase sobre isso que gosto muito, na obra “Van Gogh, o suicidado da sociedade”, ele escreve: “Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno.” Concordo com Ar-taud, a arte existe para aliviar a miséria de nossa existência.
O que diria para uma criança ou jovem que sonha em seguir a carreira de historiadora?
Escrever história é um processo muito divertido. É totalmente possível fazer um trabalho sério, com rigor metodológico e compromisso social com prazer. Precisamos de mais historiadoras e historiadores apaixonados pela História e sua escrita, trabalho que, na minha visão, tem um estatuto científico, mas também artístico, pois é imaginativo/contemplativo e, por isso, é tão maravilhoso!
Qual sua expectativa para este 2022?
Não será um ano fácil, mas espero, primeiramente, conseguirmos que a pandemia se amenize. A vacinação tem mostrado bons resultados e meu desejo é que nos livremos das complicações do coronavírus neste ano. Além disso, é ano de eleições importantes, nos poderes federais e estaduais. Espero que a população brasileira consiga enxergar os problemas que vivemos nos últimos anos e vote com consciência social. É muito preocupante o ponto que chegamos na política, precisamos de representantes com responsabilidade, extirpando o mal do autoritarismo e dos negacionismos para que não tenhamos problemas ainda mais sérios em um futuro próximo.
Semíramis, que legado você pretende deixar como historiadora? E como gostaria de ser lembrada?
Creio que como uma profissional que amou o que fez, valorizou cada ser humano e cultura que estudou e seguiu as regras do método histórico com paixão e seriedade. Meu legado creio que serão meus livros, meus textos e os alunos que formei.