De Montes Claros (MG) para São Sebastião do Paraíso esta foi a trajetória de Ana Paula Santos Horta antes de alcançar e conquistar um dos títulos mais valorosos da vida acadêmica. Na manhã de 30 de junho ela defendeu sua tese e foi aprovada como Doutora pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), Campus Araraquara. O trabalho que apresentou tem por título “Nas trilhas do velho professor: Transformações dos rituais e das festas religiosas a partir da obra de Carlos Rodrigues Brandão”.
A alegria da vitória, o prazer da missão cumprida e o cumprimento de mais uma longa jornada são alguns dos sentimentos expressos por Ana Paula ao celebrar a conquista obtida após anos que se transformaram em uma vida dedicada aos estudos. “Ser Doutora com Doutorado em universidade pública em um País onde a cultura dos bacharéis faz com que alguns profissionais, como os do Direito e da Medicina, sejam chamados de doutores por um decreto imperial, enquanto as pessoas que de verdade trabalharam para obter o título ‘estão’, não sei o que vai mudar na minha vida a partir de agora. A princípio desejo manter o que tenho, grata por cada oportunidade “, comenta.
Para chegar à essa formação foram mais de 30 anos de dedicação a contar do momento em que junto com a família Ana Paula Horta veio morar com a família em Paraíso. “Aqui recebi uma boa formação escolar, que foi responsável por minha base e pela aprovação numa das melhores universidades do país. Eu era uma menina simplória do interior de Minas, que nem o mar conhecia, quando ingressei na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) para cursar História, em 1997”, relembra.
A partir dos ensinamentos de Augustin Wernet, um alemão estudioso da teoria de História, que se tornou seu primeiro orientador de Mestrado é que Ana encontrou inspiração para aprofundar na pesquisa sobre manifestações religiosas. Este era um assunto que ela conhecia muito bem já que em suas raízes, como neta de congadeiro, se sentia familiarizada com os assuntos e temas apresentados em sala de aula. Do aprofundamento dos estudos foi surgindo uma aproximação onde o aprendizado que a levou a construir sua trajetória.
Nem mesmo a morte abrupta de Augustin em 2006 a impediu de ingressar o trabalho de mestrado com o projeto de estudar Folias de Reis em Minas Gerais, especificamente na Serra da Canastra. Um ano depois Ana vivenciou a maternidade o que fez com que fossem momentaneamente pausados os estudos. Em 2011 ela se tornou Mestra pela USP. “Vida e morte foram ganhando significados no roteiro da minha trajetória e isso explica em muito a ausência de linearidade acadêmica”, detalha.
Por algum tempo o projeto ficou engavetado enquanto surgiam outras experiências ligadas a cultura popular e as festas religiosas. Em 2012, ao participar de um encontro com violeiros, como que predestinada, Ana Paula teve a oportunidade de conhecer Carlos Rodrigues Brandão. “Nosso primeiro encontro foi assim, inesquecível e cheio de afeto. Entreguei a ele meu texto, sem pretensão clara do que eu queria, mas antes mostrei seus livros na bibliografia, vários deles tinham sido lidos e fichados para devida citação. Nós nos abraçamos e rimos muito juntos”, relembra.
Depois de certo tempo, foram surgindo os aprendizados. “Aprendi que ele classifica suas orientações em três tipos: na mesa, na rede e na caminhada, cada uma com características peculiares, a depender do momento. Sem saber eu estava tendo a primeira orientação com quem viria a ser meu grande mentor intelectual e hoje penso no simbolismo de que nossa primeira longa conversa tenha sido caminhada, não rede, nem mesa. Caminhadas pressupõem equilíbrio e movimento”, descreve.
Durante as conversas entre ambos foram surgindo as primeiras indicações sobre o projeto de pesquisa. “Sim, foi ele quem me escolheu para esse tema alegando não ter mais tempo e saúde para voltar aos lugares que pesquisou, mas que gostaria de saber como as festas mudaram e como estão”, destaca Ana Paula. Aspectos como a mundialização da cultura, espetacularização, rituais e outros foram tópicos indicados para serem desenvolvidos no trabalho que estava sendo desenvolvido. E foi assim que ela decidiu por se inscrever no processo seletivo de Doutorado.
Em 2013 na primeira tentativa, houve reprova no processo seletivo na Unicamp. “Mesmo sem vínculo com universidade eu fazia pesquisa junto a festas populares, especialmente Folias de Reis”, descreve. Em 2015 o retorno a vida acadêmica como docente na Libertas Faculdades Integradas renovaram-lhe os ânimos. Surgiu então o trabalho sobre máscaras dos palhaços de Foli, apresentado na UFU (Universidade Federal de Uberlândia) e houve o aceite para um projeto junto ao Governo Federal para a realização de um documentário sobre Folias de Reis. “O documentário foi filmado inteiramente na Serra da Canastra e teve como fonte de pesquisa minha dissertação de mestrado intitulada Os Reis da Canastra: Os sentidos da devoção nas folias (2011)”, conta
Dedicada ao trabalho e sem tempo para estudar Ana deparou com um curso de férias em Goiás a levou mesmo a passos lentos para a direção certa. Através de Jaqueline Talga, aluna do Departamento de Ciências Sociais da Unesp de Araraquara começou a ser plantada a semente que viria germinar e segue rendendo frutos. O ano era 2.017 quando tinha início mais uma etapa, decisiva, para o doutorado. Sucessivamente foram anos de pesquisas e um intenso trabalho de reunião de material para compor a tese.
Ao longo dos anos não faltaram desafios e um dos grandes foi em 2020. “A pandemia deixou parte de nossas vidas em suspensão, uma vez que houve distanciamento físico em quase todos os setores da vida social. As festas, tema desse trabalho, sofreram muito com a situação que se impôs”, cita.
O projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Unesp na seleção para ingresso no doutorado era bastante ambicioso. “Como partiu do próprio Brandão, o projeto tinha sua marca, sendo multifacetado, polissêmico, super dinâmico e extremamente engajado na produtividade acadêmica. Um projeto que era a cara do Brandão, autor cuja obra surpreende pela quantidade de escritos, pela versatilidade de temas e pela qualidade da escrita. Sua produção perpassa vários assuntos, desde antropologia, passa por poesia e literatura infantil, até educação e métodos de pesquisa”, descreve.
As lutas foram intensas. Para uma mulher que é mãe e não bolsista, fazer pesquisa de campo longe de casa é algo bem difícil, limitado por uma série de questões externas. Em linguagem científica define: “Meu projeto de pesquisa teve sua trajetória afetada por uma combinação de vivências pessoais e conjunturas externas alheias à minha vontade e foi se modificando, afunilando e ficando cada vez mais delimitado a apenas duas festas: Folias de Reis de Minas e Cavalhadas de Pirenópolis, Goiás”, enumera. Foi entregue o texto que traz a possibilidade de análise de dois rituais distintos e antagônicos, segundo a autora. Também foram feitas referências à Serra da Canastra, região de Minas Gerais onde foram realizadas as pesquisas de mestrado.
O objetivo de Ana Paula Horta foi de apresentar um exercício de redescoberta, de revisitação e de revitalização dos valores artísticos e humanos das criações populares, considerados um sistema rico em potências interpretativas. “Falamos em transformações, em mudanças, em rupturas e entendemos que, como pessoas que se dedicam aos estudos da cultura popular, nós também nos transformamos ao aprender que existem outras maneiras criativas de se viver”, cita a autora.
Ao longo da caminhada ela recorda que apesar de estar vinculada a universidades públicas, nunca teve bolsa de amparo à pesquisa. “Essa condição não é ideal para a produção acadêmica, uma vez que nunca pude me dedicar com exclusividade aos estudos e pesquisas. A passagem como repórter pelo Jornal do Sudoeste também foi lembrada, por onde fixou laços familiares e de gratidão. “Trabalhei no Jornal do Sudoeste, onde fiz grandes amigos. O Nelson é padrinho da minha filha, meu compadre, uma pessoa que sabe reconhecer os esforços alheios, que vibra com as conquistas dos outros. Tenho muito orgulho de dizer que por anos trabalhei no Jornal, onde fiz uma das coisas que mais gosto nessa vida, que é escrever”, menciona. O que era para ser uma breve experiência, criou raízes. “Nunca mais sai de Paraíso”, completa.
Das viagens nacionais e internacionais, da América Latina à Europa e até mesmo pelo interior do Brasil, a terra querida nunca é esquecida. “É aqui em Paraíso que vivo e trabalho”. E um destes locais de acolhida e afetividade está a Libertas Faculdades Integradas. Ana diz que o local foi um dos melhores ambientes encontrados na cidade para o seu desenvolvimento intelectual. “A Libertas sempre foi uma mãe para mim, então agora pretendo dar retorno à instituição, da forma que me for possível, mesmo diante de tantas mudanças que o ensino híbrido tem trazido”, disse.
Instituições como o Colégio Crescer, E.E. Clóvis Salgado também são locais onde Ana Paula atua e exerce seu magistério com gratidão. “Atuar na educação básica é um trabalho difícil, pouco reconhecido em nosso país, especialmente em Minas Gerais, mas é com o magistério que encontro respaldo financeiro e o ambiente escolar me encanta demais, com todas as suas potencialidades e desafios. Ainda tenho esperanças de que a educação será mais valorizada, mas independente disso estudei a minha vida toda porque realmente gosto de estudar, gosto de produzir textos acadêmicos, de manter um currículo lattes atualizado, de trocar ideias em congressos e de contribuir para a ciência”, observa.
A conclusão da formação e a titulação alcançada é uma conquista pessoal. “Não é uma ambição profissional, afinal ser doutora em Ciências Sociais numa sociedade onde as humanidades estão sendo varridas do currículo escolar, onde se pensa que apenas ciências com potencial de produção material e tecnológica merecem reconhecimento, chega a ser um ato de resistência”, define. Para ela o momento é de saborear e celebrar o momento.
O que é tido como certo é que a Doutora Ana Paula Horta pretende manter os estudos para dar continuidade a sua formação. “A médio prazo penso em fazer Pós-doutorado, um estágio em alguma universidade do exterior seria ideal, mas tudo isso dependerá de bolsas, de auxílios e incentivos à pesquisa e à ciência”, avalia. Contatos iniciais já estão sendo mantidos e até já surgiu um convite com destino à Itália. “No momento estou fazendo ajustes na tese e preparando um trabalho que apresentarei nas Jornadas Sobre Alternativas Religiosas da América Latina, um congresso internacional que se realizará no Rio de Janeiro em agosto”, anuncia. Este será o primeiro Congresso presencial que ela participará desde o início da pandemia em 2020 e também o primeiro em que utilizará um crachá com a descrição de Doutora em Ciências Sociais. “Diante disso, estou muito feliz e grata por tudo que realizei até aqui”, finaliza.
A Defesa da Tese de Doutorado em Ciências Sociais de Ana Paula Santos Horta, cujo trabalho se denomina “Nas trilhas do velho professor: Transformações dos rituais e das festas religiosas a partir da obra de Carlos Rodrigues Brandão”, foi realizada no dia 30 de junho de 2022. A apresentação ocorreu de maneira virtual pelo Via, sistemas de videoconferência com o uso de outras ferramentas para comunicação a distância.
A pesquisa foi orientada pelo Professor e Doutor Edmundo Antônio Peggion. “Esse trabalho é para Carlos Rodrigues Brandão. A quem dedico também a frase de Carl Sagan: ‘Diante da vastidão do tempo e da imensidão do universo, é uma imensa alegria para mim dividir um planeta e uma época com você”, ressalta a dedicatória da autora. Conforme Ana Paula Santos Horta, para a elaboração da tese ela conversou com muitas pessoas que fazem as festas, sejam como assistência, organizadores, bastidores ou como personagens principais. Foliões, devotas e devotos de Santos Reis e do Divino, imperador, cavaleiros, mascarados, artesãs e artesãos, pesquisadoras e pesquisadores de festejos, toda essa gente que vive da festa e para a festa ajudaram na realização da pesquisa. “Não vou mencionar nomes para não ser injusta, mas agradeço a cada narradora e narrador que, gentilmente, me cedeu tempo e saberes”, disse.
De acordo com a escritora o trabalho aborda as transformações, permanências, continuidades, refluxos e espetacularização dos rituais dentro de duas festas religiosas brasileiras. A proposta toma como ponto de partida algumas pesquisas de Carlos Rodrigues Brandão, através de estudo que interpreta dois rituais festivos que fazem parte do que aqui se convencionou chamar de catolicismo popular brasileiro: a Folia de Reis de Minas Gerais e a Festa do Divino de Pirenópolis, Goiás, cujo enfoque são as Cavalhadas.
Com o intuito de investigar o universo das festas religiosas pede a iniciativa pede o reconhecimento de uma complexidade específica, que não deve ser apreendida apenas bibliograficamente, mas também por meio da vivência da pesquisa de campo. Aplicando o método etnográfico, em sua dimensão epistemológica, enquanto modo de conhecimento, que faz da subjetividade meio para a objetividade, a pesquisa de campo foi fundamental para a realização desta pesquisa, que pode ser entendida como interpretação, destinada antes de tudo a confrontar subjetividades e delas tratar.
A importância deste trabalho, portanto, reside em dar voz ao recorte de um etnógrafo notável e, a partir disso, fazer com que as vozes dos agentes das festas ecoem também em meio às dinâmicas dos rituais, diz a introdução. “Se, inicialmente, as duas festas são encaradas como pontas antagônicas do movimento de enquadramento das expressões artísticos-culturais populares frente ao processo de globalização; no decorrer deste trabalho são vistas como exemplos de diversidade”, descreve o relatório inicial.
Nos dois rituais em questão, o uso de máscaras traz o tema da presença do mal no catolicismo, cujo poder não é desprezado; ao contrário, ele é assimilado ao ritual e trabalhado para que seja realizada uma transformação via batismo, completa. Assim, a festa plural, polifônica e multifacetada comporta ambiguidades: economia e cultura, tradicional e moderno, mercado e devoção, ritual e espetáculo.
A Comissão Examinadora foi composta pelos seguintes membros:
TITULARES
SUPLENTES