OPINIÃO

A dengue não quer brincar

Por: . | Categoria: Acidente | 06-05-2023 21:02 | 580
Foto: Arquivo

Tio Flávio

Quando nós chegamos, todos já estavam sentados num grande salão, vendo novela, o que é permitido até um determinado horário, quando eles já seguem para os quartos para dormirem. O jantar ainda estava sendo servido para aqueles que chegaram mais tarde.

Uma semana antes, a coordenação do Albergue Tia Branca 2, que atende migrantes em situação de rua, já tinha avisado que na terça-feira teria bingo. A gente não sabia como seria a adesão, mas tudo que é experimental é assim mesmo.

Durante a pandemia, o tradicional albergue Tia Branca, que fica no bairro Floresta, em BH, dividiu o seu atendimento, uma vez que recebiam cerca de 400 homens por noite e com a nova realidade da pandemia, isso não seria possível mais. Assim, no bairro funcionários, uma estrutura muito bem-organizada foi criada para receber alguns deles. Quando entramos com os brindes, os gritos de "bingo" saiam da boca dos menos tímidos. A mesa foi posta, as regras esclarecidas e tudo corria bem. Uns marcavam a cartela na vertical, outros na horizontal, em formato de xis e até chegar na cartela cheia. Duas rodadas em meio a tanta esperança, diversão, empolgação. Nem todo mundo ganhou presente, mas vários foram abraçados pela sorte.

No final, todos se despedem e cada voluntário segue o seu destino. Voltei a pé para casa, pois estava uma noite agradável. Eu estava animado, pois ainda prepararia uma bagagem para uma viagem de trem até Ipatinga, onde eu daria uma palestra para profissionais que atuam com idosos em diversos municípios do Vale do Aço e que a Associação Beneficente Ágape promove encontros periódicos de aprimoramento e relacionamento. Minha palestra fecharia este evento de dois dias.

Até deitar eu não sentia dor alguma. Porém, a madrugada não foi nada boa. De meia em meia hora eu acordava com a manifestação de algum tipo de dor: mal-estar, dor de cabeça, dor no peito ao respirar. Tomei um medicamente e acreditei que às 7 horas eu estaria melhor para dar início à viagem. Não é que as dores foram se multiplicando a cada hora que passava? O corpo todo já não mexia, uma dificuldade de levantar-me da cama, desânimo, calafrios, a cabeça se assemelhava a uma melancia, que tinha inchado e estava prestes a explodir.

Quando admiti que não daria conta de sair da cama, mandei uma mensagem para a empresa contratante dizendo o quanto eu lamentava em informar que não iria cumprir o compromisso da palestra. Pedi à pessoa que trabalha comigo para cancelar todos os meus compromissos até o fim de semana, o que me doía tanto quanto os sintomas daquilo que invadira o meu corpo. Mas, eu não tenho controle sobre tudo e é sempre bom entender isso. Cancelamos todas as palestras.

Numa primeira consulta virtual, a suspeita de covid ou dengue. Como meu corpo não reagia, de tanta dor, usei os medicamentos indicados pelo médico e fiquei em casa o dia todo, esperando um fôlego de coragem para ir a um pronto-socorro ou a um laboratório. No dia seguinte, outra consulta e a ida ao laboratório para os exames.

Eu estava ingerindo mais de quatro litros de líquidos por dia, pela orientação em me hidratar. Não tinha ânimo para olhar mensagens de celular, assistir a algum filme ou fazer qualquer coisa. Era uma dor infinita e um desânimo considerável.

Os exames deram negativos para as duas pragas que suspeitávamos. Como há a necessidade de seis dias de sintomas para um teste de Chikungunya, era preciso aguardar. As dores diminuíam sua performance conjunta, tendo cada dia uma característica: febre, dor de cabeça, afta, azia, sendo o desânimo presente em todos eles e nos dias finais da doença, uma coceira inacabável pelo corpo.

No primeiro dia do sintoma, sem saber o que era, mas com todos os sintomas da dengue, eu pensei: eu vou sofrer, pois todo mundo relata o quanto é ruim passar por isso. Mas, vai passar. Isto não alivia a dor, mas dá uma esperança danada. A solidariedade e o cuidado de tanta gente não me surpreenderam, mas me animaram.

Hoje, ainda sentindo uma fraqueza no corpo, já diminuí as dosagens de líquidos, mas uma preocupação me assola: um mosquito, que deixa um tanto de gente ruim, que assume o controle da sua vida, muda toda a sua rotina, poderia ser facilmente evitado se todo mundo fizesse a sua parte.

As campanhas dos governos nos estimulam, mas a gente só engaja mesmo depois de passar por esse mal. E nem sei se apendemos com isso e, no correr do dia a dia, voltamos a relaxar, afinal, "eu já tive mesmo".

Uma das cosias que temos que mudar de forma definitiva na sociedade é a consciência coletiva. É necessário entender que não vivemos em redomas e que o ato de um impacta em tanta gente. É preciso aprender para que coisas que deveriam estar no passado, como a dengue, não voltem a ser ameaça.

(Hoje em Dia 05/05/2023).

Tio Flávio Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural