SR. JOAQUIM

Cento e cinco capítulos: a vida épica de Joaquim Pimenta de Araújo

Paraisense centenário fala com saudades sobre um tempo que marcou a história da cidade e de sua vida
Por: Ralph Diniz | Categoria: Educação | 18-06-2023 11:08 | 6461
Cheio de histórias e saudades, Sr. Joaquim completará 105 anos em novembro
Cheio de histórias e saudades, Sr. Joaquim completará 105 anos em novembro Foto: Reprodução

Há quem diga que a vida é um livro, e que cada ano é um capítulo. Se for assim, existe um paraisense em especial que é o criador de uma obra extensa e extraordinária. Joaquim Pimenta de Araújo vai completar 105 anos em 2023, e tem em sua mente e em seu coração as páginas de uma história fascinante. Ele vive há mais de um século, e viu o mundo mudar de formas inimagináveis.

Senhor Joaquim testemunhou o desenvolvimento de Paraíso e da sociedade. Ele trabalhou duro, enfrentou dificuldades, celebrou conquistas, sentiu saudades. Ele é um livro de memórias vivo, que sente prazer em compartilhar seus relatos, suas piadas, seus causos e até suas histórias de assombração. Ele é uma figura ímpar, que ensina que o tempo não apaga a alegria de viver. Ele diz sentir falta do passado, mas também se orgulha de ter escrito tantos capítulos da vida.

Nascido na região da Angola, comunidade rural situada entre as cidades de São Sebastião do Paraíso e São Tomás de Aquino, no dia 27 de novembro de 1918, Joaquim é o testemunho vivo de um século de histórias. Em cada ruga de seu rosto, ele carrega consigo lembranças da vida na lavoura, do êxodo para a cidade, da fome pós-1929, da segunda guerra mundial, e da própria história de São Sebastião do Paraíso.

Os primeiros capítulos da vida de Joaquim foram escritos sob o sol quente da lavoura de café, onde aprendeu as lições iniciais do trabalho duro. Filho de Antônio Afonso de Araújo e Dona Tereza, Joaquim tinha tanto talento para cuidar da terra que, ao se casar com Maria Pimenta do Nascimento, filha de seu vizinho, ele assumiu as plantações do sogro, transformando-as em um exemplo de prosperidade.

Mas, aos 20 anos, por causa dos poréns da vida, Joaquim foi obrigado a trocar o campo pela cidade e embarcou em novas histórias. “Naquela época, Paraíso só tinha três ruas calçadas com pedras: a Pimenta de Pádua, a Dr. Placidino Brigagão e a Pinto Ribeiro,” relembra. O personagem atravessou capítulos variados de sua vida, trabalhando em uma serralheria, sendo guarda em um posto de combustíveis, e mais tarde, motorista da Coolapa, antiga cooperativa de produtores de leite de São Sebastião do Paraíso. Uma memória deliciosa ainda o acompanha: “Eles faziam uns queijões grandes, bonitos. Dava gosto”.

Aos poucos, Joaquim foi tecendo mais capítulos de sua vida, se mudou para Campinas com a esposa Maria Pimenta do Nascimento, construiu a casa da família com suas próprias mãos, e criou os seus seis filhos. Continuou trabalhando mesmo após a aposentadoria, tornando-se uma figura conhecida e querida na comunidade. “Tem horas que eu fico muito chateado. Se eu tivesse com a coluna boa, estaria trabalhando ainda. Não coisa pesada, mas algum serviço leve. Mas os ‘janeiros’ pesam nas minhas costas e eu não consigo mais,” lamenta. No entanto, a vida cobrou seu preço. Em 1991, sua esposa faleceu, e em 2005, Joaquim decidiu voltar para Paraíso juntamente com a filha Ilidia, que vive com o pai até hoje.

As mudanças, os desafios da vida e o cair das folhas dos calendários não apagaram as memórias de sua infância e juventude em Paraíso. “Algumas pessoas tinham aqueles carros com cobertura de lona e a alavanca da marcha comprida, que só existe em museu hoje em dia. O resto era só carroça e carro de boi.” Outra memória forte está na maneira como as farmácias operavam: “Não existia esse tanto de comprimido que tem hoje, não. O único que existia era o Melhoral. Os outros remédios eram manipulados pelo farmacêutico. Você chegava com a receita, entregava e ele te passava um horário para ir buscar”.

Ele ainda se recorda do cemitério antigo, que ficava onde hoje é a praça Comen-dador João Alves, e a transferência dos restos mortais para o novo cemitério: “Eu me lembro de passar por lá e ver os ossos pelo chão. Era assustador. Eles pegavam aqueles restos, levavam para o novo cemitério e amontoavam tudo. Depois, queimaram”.

Joaquim também carrega consigo lembranças mais sombrias, como os efeitos da Crise de 1929, um colapso econômico mundial que respingou suas consequências em Paraíso. “Muita gente passou fo-me,” recorda. “As pessoas pegavam aquele feijão que não estava bom, que ficava encostado, e botava na panela, porque a coisa foi apertando e não tinha o que fazer. Foi uma fome terrível. Faltava alimento, tinha racionamento. As famílias tinham uma caderne-tinha que era entregue depois de uma fiscalização nas residências para saber quantas pessoas moravam na casa. E com essa caderneta você podia ir até a venda e comprar a quantidade exata de comida para aquela quantidade de pessoas para uma quinzena. Se acabasse a sua comida antes, não tinha o que fazer. Deu, deu. Não deu? Paciência. Minha irmã mais velha foi em-bora para o Paraná e deixou a caderneta dela comigo. Eu fui comprar comida com ela, mas não me deixaram levar”.

Com o colapso do mercado mundial, a exportação de café foi arruinada. Resultado disso foi que os campos ficaram cheios e os armazéns já não tinham mais como armazenar tanto produto das safras anteriores. Então, os preços naturalmente despencaram. A economia brasileira ainda era muito baseada no café para exportação, então o governo de Getúlio Vargas optou por aumentar as taxas alfandegárias nacionais e comprar o café armazenado para quei-má-lo. “A gente vinha para a cidade fazer compra e via aquela ‘fumaçona’ no céu. Tinha um armazém grande onde hoje é o Jardim Berna-dete e era lá que o café era queimado. Os caminhões chegavam cheios. Eles tiravam do saco porque a sacaria valia mais que o café, despejavam todo e queimavam tudo. Foi muito triste. Ficavam uns guardas com fuzil por perto, para ninguém pegar café. Era proibido”, conta. 

Os cafeicultores foram pagos pelo governo brasileiros, mas muitos deles faliram de qualquer maneira, pois os preços permaneceram baixos por anos, já que muitos estavam endividados e tinham pouco acesso ao crédito. “Foi nesse tempo que apareceram as favelas. Você acha que era gente ruim que morava naqueles morros? Não era. Eram pessoas boas, honestas, gente da roça, que perdeu tudo o que tinha e teve que deixar a lavoura. Foi um tempo muito difícil”, recorda Joaquim.

Por fim, outra lembrança marcante de Joaquim foi durante a Segunda Guerra Mundial. Paraíso cedeu jovens à Força Expedicionária Brasileira, que foram para a Itália lutar contra os países do Eixo. Mas, além dos heróis, nosso personagem tem na memória história de alguns rapazes que resistiram ao chamado da FEB. “Eu me lembro dos moços correndo e se escondendo porque não queriam ir lutar”, diz, rindo da falta de coragem dos conhecidos.

E o tempo, implacável como ele só, passou. Passou trazendo com ele o desenvolvimento da cidade, transformando a sociedade, esbran-quiçando os cabelos de Joaquim e deixando marcas em seu rosto. Os janeiros foram se acumulando e a coluna... Bem, ela não é a mesma dos tempos de rapaz. Mas uma coisa não mudou nesses quase 105 anos: a capacidade desse herói de resistir, persistir e continuar escrevendo mais capítulos no grande livro que se tornou a sua vida. “As coisas no passado eram mais difíceis de serem conquistadas do que hoje em dia. Mas era um tempo muito melhor de se viver. Às vezes eu fico aqui na sala, sentado, me lembrando das coisas que eu vivi. Foram tantos momentos. Tantas pessoas que passaram por mim e se foram. E eu continuo aqui. Eu sinto saudades, sim. Mas estou vivo, graças a Deus, e me sinto feliz por isso”, conclui.