Milicias
Mais um miliciano morto no Rio. Sérgio Rodrigues da Costa, o “Sérgio Bomba”, foi vítima de homicídio em um quiosque no Recreio dos Bandeirantes por membros de uma outra milícia criminosa. Antes disso, médicos foram assassinados na Barra da Tijuca por traficantes que confundiram uma das vítimas com um miliciano jurado de morte por uma facção criminosa.
O Rio está parecendo a Chicago dos anos 1930, ou o Líbano do Hezbollah ou a Faixa de Gaza do Hamas. Aliás, ambas milícias com peculiaridades referentes à sua época, religião e cultura.
Mas o que é uma milícia?
Quando você ouvir falar em milícia, tenha em mente um grupo paramilitar, com organização, hierarquia e cadeia de comando, como o são os exércitos das nações, só que em um contingente reduzido e intenções nada cívicas. Na verdade, criminosa. Se no Oriente Médio as milícias são políticas e religiosas, nas grandes cidades brasileiras elas são formadas por policiais ou ex-policiais e seguranças privados, e funcionam como uma força de segurança paralela espalhando o terror entre bandidos e quadrilhas de traficantes, mas também extorquindo dinheiro de gente de bem.
É que as milícias cariocas cobram uma “taxa de proteção” para assegurar o transporte de Vans, o funcionamento de jogo do bicho, a prostituição e as máquinas caça níqueis – e nisso elas se assemelham bastante aos bandos mafiosos de gangsters ítalo americanos como Al Capone e outros, que cobravam para dar segurança a pequenos comerciantes e a vendedores clandestinos de bebida alcoólica durante os anos duros da Lei Seca americana, em várias cidades dos EUA, principalmente Chicago e New York.
As milícias nascem da falta de segurança pública estatal. A milícia inicialmente atua sob a falsa impressão de assegurar a tranquilidade da vizinhança, mas seus tentáculos vão se ramificando perigosamente e seus membros começam a fazer justiça com as próprias mãos, executando criminosos e milicianos de bandos rivais. As taxas que cobram de comerciantes de bem não resultam de nenhum contrato escrito ou acordo de vontades regular, mas de extorsão: ou me paga, ou vão te assaltar. E vão. É mais ou menos o que acontece com flanelinhas mal intencionados e irregulares de grandes cidades brasileiras: paga o cara ou ele arranha seu carro.
Como são grupos paramilitares, inclusive dos partidos políticos dos países muçulmanos do Oriente Médio, esta formação marcial é assegurada pela participação de seus principais membros em forças públicas de segurança. No mundo árabe, todo adolescente que se imiscua na política do Islã mais cedo ou mais tarde vai aprender a manejar um fuzil, mas no Rio e demais cidades brasileiras geralmente esta formação de milicianos decorre de suas passagens pelo Exército ou pelas polícias militar ou civil – há muitos milicianos que são, ou foram, policiais ou militares, antes de aderirem ao “lado negro da força”.
Onde o Estado não chega
Eu disse aqui que as milícias surgem diante da deficiência na segurança pública fornecida pelo Estado, isso ao longo dos séculos e em diversas nações distintas. Quando a polícia não sobe o morro para proteger o cidadão de bem que habita as favelas, quando o Estado não protege seu povo de maneira adequada, surgem os justiceiros que, organizados militarmente, formam as milícias. Pode parecer, a princípio, que há milicianos do bem, que protegem gente honesta de assaltantes e traficantes, principalmente nos grandes centros, mas isso não é verdade. As milícias representam a completa falência do Estado como gestor de segurança pública e braço armado, e com isto nos conduzem às trevas da pré-história da nossa civilização, em que a lei que havia era a do mais forte, e a justiça era meramente retributiva, castigando o mal com o mal, na base do “olho por olho, dente por dente”.
Nas sociedades civilizadas, verdadeiramente civilizadas, o Estado detém o monopólio estatal da segurança pública e da justiça Só os governos podem te dar polícia e aplicar a justiça dos homens – e claro que o fazem com eficiência. Por isso não há lacunas que podem ser exploradas pela criminalidade organizada, um fenômeno que já foi mundial, mas que hoje é bastante terceiro mundista. Quando não há eficiência em algum serviço estatal, quando um serviço estatal não é suficiente, abre-se espaço para a iniciativa privada. Isso também vale na segurança pública.
O MST vem aí
João Pedro Stédile, líder do MST, afirmou em alto e bom som que vai haver mais “luta social” pela frente, mesmo no governo Lula e sempre em proveito da reforma agrária. “Luta social”, acredito, é um eufemismo utilizado por Stédile para explicar e justificar mais invasões de terras, fenômeno antigo e de quando a reforma agrária era de fato importante para o Brasil. Esta luta, não como é feita pelo MST, já foi justa e necessária, não infringindo a lei e lesando propriedade privada, mas atuando politicamente para incrementar a desapropriação de terras improdutivas para distribuí-las a agricultores de fato necessitados e que precisavam da terra para trabalhar.
Só se justificava a reforma agrária, então, para deter o homem no campo e impedir o êxodo para as grandes cidades, com reflexos sociais danosos de favelização das periferias dos grandes centros e aumento exponencial da criminalidade urbana. Ela visava, originariamente, distribuir terras a verdadeiros camponeses, sem vieses ideológicos e de política partidária. Quando a reforma agrária começou de fato a ocorrer no Brasil, em meados dos anos 1990, ela alcançou mal e porcamente o oposto de seus legítimos e históricos fins: serviu para fins políticos, gerou conflitos armados no campo, favelizou o meio rural, entregou terras a camponeses que as venderam ou revenderam e assentou gente que nunca pegou em uma enxada na vida.
José Rainha e o trem da História
Quem duvida disso, pergunte-se por onde anda José Rainha Júnior, ex-líder do MST hoje cuidadosamente “esquecido” pela mídia e nem mencionado por Stédile ou seus pares do Movimento dos Sem Terra. Rainha Jr cumpria e cumpre pena por diversos delitos, um deles um homicídio relacionado a conflitos rurais decorrentes de invasão de terras, outro de extorsão: supostamente cobrava de proprietários rurais para não invadir suas terras. Essa moda andou pegando nos rincões rurais brasileiros e gerou resposta à bala de fazendeiros a manifestantes do MST em diversos assentamentos e invasões, com resultados funestos na maioria das vezes.
A reforma agrária, hoje e nos moldes em que é impelida pelo MST, não é somente desnecessária, mas também um desserviço para o homem do campo, que não quer mais fazendinha e sitiozinho para plantar hortaliças. Querem filhos empregados em grandes empresas do Agro, cursando faculdades e prosperando. O futuro do Brasil rural é, hoje, o dos conglomerados econômicos do agronegócio, o que está modificando o perfil da economia brasileira e tornando o campo e o setor agropecuário da nossa economia exemplos incontestáveis de um Brasil que deu certo.
Saudosismo
A reforma agrária baseada em assentamentos e invasões é um passeio perdido pelo trem da história em sua inexorável marcha rumo ao progresso. Neste sentido, Stedile é, no mínimo, um saudosista que se recusa a enxergar o passado como deve ser enxergado, pelo retrovisor. Ao incentivar novas “lutas sociais” está não somente retrocedendo no tempo, mas ressuscitando conflitos hoje desnecessários para a verdadeira utilidade da distribuição de terras para quem não as possui e delas necessita para trabalhar, que é a justiça social que aumenta as oportunidades de trabalho no campo e impede a miséria no meio rural. Só assim se diminuem as distâncias sócioeconômicas tão abisssais entre a população mais rica e a mais pobre, neste nosso país continental.
Interessante é observar que, quanto aos problemas, todos concordamos em uníssono. Na hora de planejar as soluções, é que surgem as controvérsias. Uns, os verdadeiros cidadãos dotados de honesto interesse cívico, procuram criar estratégias que sejam eficazes para a pacificação social. Outros, guindados por interesses políticos, ideologias extintas e populismo eleitoreiro, ressuscitam antigas lutas já prescritas em sua utilidade social. Assim, atiçam mais conflito, contribuem pejorativamente, malignamente, com o desgoverno e com uma polarização que tem tornado muito perigosos e bélicos os nossos tempos.
Polarizações
Umberto Eco relatou certa feita que pegou um taxi em New York. O taxista era, como sempre, um estrangeiro migrado, no caso um europeu da parte pobre do leste, de um desses países terminados em “ão”, limítrofes com a Ásia. Ignorante, o homem perguntou a Eco de onde era o escritor. Ao saber que era Italiano, lhe perguntou: “Contra quem vocês lutam?”. Eco relutou em responder, mas se obrigou a ser sincero com o taxista: “Nós italianos lutamos contra nós”.
É assim que está o Brasil. Brasileiros lutando contra brasileiros. Com ou sem o auxílio mórbido de políticos ultrapassados como João Pedro Stédile.
O dito pelo não dito
“Nem todas as verdades são para todos os ouvidos.” (Umberto Eco, filósofo e escritor italiano).
RENATO ZUPO – Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Escritor.