O Caso Abin: entenda finalmente
Desde que o mundo é mundo, as nações possuem exércitos, um corpo diplomático e um serviço de inteligência – tudo isso muda de nome conforme a cultura e a época dos povos, mas é sempre invariável a necessidade governamental de segurança através de armas, conversa e informações. Aliás, as duas últimas costumam evitar que os Estados tenham que se valer das armas e fazer guerras. Serviços de informação e corpos diplomáticos eficientes economizam vidas e muito dinheiro, e não esqueçamos aqui que a guerra é um péssimo negócio pra todo mundo em todo o planeta.
No caso dos serviços de inteligência, lidam com informações estratégicas, não necessariamente públicas. Aliás, se os serviços de inteligência só coletassem aquilo que todo mundo sabe e que está acessível a todos, perderiam a razão de ser e não haveria vantagem alguma em manter espiões e agentes secretos na folha de pagamento dos governos.
A Abin não foge à regra. Lida com informações estratégicas, que coleta e guarda sem divulgar. Esta divulgação só existe no âmbito dos espiões ou “arapongas”, como são chamados de maneira carinhosa no Brasil os agentes secretos da Abin.
O que a Polícia Federal investiga, a mando do ministro Alexandre de Moraes (magistrado competente para todos os inquéritos que envolvam Jair Bolsonaro, ou quase todos), é a utilização da ABIN, durante o finado governo do bom capitão, para especulação política e deletério pessoal do clã do ex-presidente.
Monitorar e investigar
É muito difícil, na prática, discernir o que é interesse público e o que é interesse privado na vida de um presidente da república no exercício do cargo. Entendo que tudo que se refira ao cotidiano presidencial interessa aos arapongas, porque afeta a governabilidade de maneira direta ou indireta.
Neste idêntico sentido, o monitoramento de autoridades sempre fez parte da rotina de agentes de serviços de inteligência. Monitorar não é investigar: monitora-se preventivamente e as vezes para o bem, investiga-se alguém ligado por algum meio à prática de algum crime – estes conceitos e diferenças são técnicos e não subjetivos, entenda. Eu, por exemplo, como magistrado sou monitorado o tempo todo, pela polícia ou pela minha própria instituição de origem, para a minha própria segurança e a do povo. Enquanto sou monitorado, sou um “alvo” para meus anjos da guarda, por mais estranho que isso possa parecer. Se estivesse sendo investigado, seria um suspeito dentro de um inquérito instaurado, em segredo de justiça ou não.
Segredos são segredos
Por falar em segredos, os arapongas da Abin, assim como espiões e agentes secretos de todo o mundo, xeretam mesmo a vida privada das pessoas ligadas aos governos, porque essa vida privada influencia o preço do petróleo, a inflação, eleições e até podem deflagrar guerras – vide o exemplo da Ilíada, de Helena e a Guerra de Tróia. A coisa toda é mitológica e histórica. A vida privada nos guia também na esfera pública e no exercício do poder político, e a coleta de informações sigilosas nada tem de ilícita, porque a coleta é secreta e a informação não pode ser divulgada.
O conteúdo das informações, que são a matéria-prima dos serviços de informação, não pode ser divulgado. Coletá-las não é ilícito, divulgá-las sim. Por isso é ridículo pensar em Lei da Transparência ou em prestação de contas da Abin ou de qualquer outra agência de espiões do mundo acerca das suas atividades que são e tem que ser secretas e clandestinas pela própria razão de ser deste serviço e destas instituições.
A política para os piores
Eu já disse que vão acabar colocando Bolsonaro na cadeia, não porque ele a mereça, mas porque isso virou uma prática corriqueira na América Latina, e sobretudo no Brasil: meter na cadeia ex-presidente, resolvendo na base do Direito Penal o que não se resolveu com a política, as eleições ou a Constituição. Na Venezuela, agora, a principal opositora de Maduro foi declarada inelegível e os adversários que depuseram Evo Morales na Bolívia estão sendo presos pouco a pouco. É aterrador, mas politicamente não há mais diferença entre Brasil, Bolívia ou Venezuela. Assustador. Chegamos a isso.
Há duas linhas de pensamento possíveis aqui, todas duas tétricas. Ou há perseguição política ideológica em pleno Século 21, algo típico de terceiro mundo, ou desumanizaram de vez a classe política, como os nazistas fizeram com os judeus durante a segunda guerra mundial e desde antes. Se for político, é obrigado a tudo, tem que ser perfeito, qualquer erro impeachment, inelegibilidade, processo e cadeia.
Esqueceram que todos somos seres políticos, na acepção filosófica do termo E o político partidário, aquele que concorre a eleições para o preenchimento de cargos de Estado, vem do povo. Todas as mazelas do povo, o político as carrega consigo durante as eleições e no exercício da função pública. Não adianta cobrar do político uma postura de santo, de virgem vestal, enquanto se chancela o vitimismo do eleitor, que tudo pode e é um coitado vítima da sociedade. É uma guerra assimétrica com profundas contradições cobrar tudo do representante eleito pelo povo, e do eleitor que coloca no poder seu representante a tudo se perdoar, inclusive as más escolhas.
Um dedo de prosa
Por estes dias conversei com um amigo político, dos bons e dos muitos que tenho, graças a Deus. Concordávamos que, a se prosseguir cobrando a perfeição santificada de políticos, não encontraremos mais boa gente disposta a largar seus afazeres e fazer política. A saturação de processos deflagrados por mínimos detalhes de prestações de contas, porque uma nota não bate com uma despesa, ou porque se gastou com uma escola o que se deveria gastar com uma creche, impede os bons de fazerem o bem. Atiçar no banco dos réus por nepotismo a um governante porque nomeou para cargo de confiança alguém de confiança que era primo do cunhado do vizinho da empregada é ridículo, mas lamentavelmente acontece. No entanto, a dispensa de licitação de despesa mínima que poderia ser licitada e outras filigranas e questõezinhas banais perseveram implodindo a honra dos políticos, destruindo a reputação de homens e mulheres de bem, provocando-lhes a inelegibilidade. Estão pondo políticos na cadeia… por fazerem política! Se isso prossegue por mais uma década, corre-se o sério risco de, em pouquíssimo tempo, não se ter mais gente de bem disposta a fazer política, a concorrer a cargos eletivos, a buscar compor governos para o bem do povo. Perseguida e desumanizada a classe como está, dentro em breve será somente composta por gente que, fora da política, nada tem, nada vale e nada é, e que busca no cargo público somente a satisfação de suas vontades e o enaltecimento do ego.
É chegada a hora de uma reflexão séria sobre os limites da crítica e sobre a racionalização das cobranças em torno das personalidades que abandonam a tranquilidade de suas carreiras, o conforto de suas vidas privadas para, de maneira abnegada, praticar o bem comum. Se no curso deste sacerdócio público cometem erros humanos, que cesse a impiedade, que se enxergue o político como um ser humano que, como tal, sempre haverá de ter seus pequenos pecados que devem, se não ser esquecidos, ao menos serem relativizados em proveito de uma sociedade que deles depende e haverá de depender, sempre. Fazer terra arrasada da classe política nunca fez bem a nenhuma sociedade, em nenhum tempo. Afugentar os bons candidatos à política séria é tumultuar o funcionamento da República, com evidente prejuízo para a população.
RBC e Cissa Guimarães
O Governo Lula ressuscita a Rede Brasil de Cultura – a TV Cultura – e o programa Sem Censura, outrora líder de audiência, com gastos de milhões e a contratação da apresentadora e atriz Cissa Guimarães (sem licitação) para ser a âncora do programa. O salário dela, de 70 mil reais por mês, tem provocado algum estardalhaço. Dizem ser mais uma trama de Lula para beneficiar compadres da política.
A TV aberta no Brasil está moribunda, mas ainda alcança muita gente. Não a TV Cultura, infelizmente, em que pese sempre tenha tido uma grade de programação das mais substanciais da televisão brasileira, com ênfase em educação e entretenimento de qualidade, além de possuir uma agenda cultural sólida. Só que ninguém vê. Portanto, viva a TV Cultura, ainda que responda por irrisória fatia do mercado e seja prestigiada por poucos, mas bons.
O programa Sem Censura foi um marco da TV Brasileira, e Cissa Guimarães não precisava de licitação ou concurso público para ser contratada. O contrato é temporário e há dispensa de licitação para o caso da notoriedade e especificidade do contratado, o que é o caso da Cissa – porque só há uma Cissa Guimarães. Quanto ao seu salário, desculpem-me por dizer isso em um país em que há dezenas de milhões de pessoas vivendo de salário mínimo: celebridade do eixo Rio – SP ganha mais que isso em um final de semana apresentando baile de debutantes ou fazendo comercial de margarina. É dinheiro de pinga pra artista global.
Quanto aos critérios de Lula, aqui impera a coerência deste humilde crítico que vos fala (ou tecla): se me elejo e posso contratar pessoas, é claro que vou contratar amigos e correligionários. Lula, como eu disse, nas suas características é mais do mesmo. Peca, e muito, quando tenta bancar o paladino da perfeição moral, o que nunca foi. Jamais vi nestes mais de cinquenta anos de vida bem vivida o político vitorioso prestigiando adversários com nomeações e contratos com dispensa de licitação.
O regime presidencialista, alguém já disse, é uma monarquia a prazo fixo. O presidente tudo pode, como um rei, no curso de sua gestão e desde que legitimamente eleito. O único monarca que não conseguiu reinar no trono do Brasil foi Jair Bolsonaro. Não deixaram.
O Dito pelo não dito.
“O mal que fazemos não atrai contra nós tanta perseguição e tanto ódio como as nossas boas qualidades.” (François La Rochefoucauld, escritor e filósofo francês).
RENATO ZUPO – Magistrado, Escritor, Palestrante