Pastor condenado por juiz
Juízes e padres ou pastores tem algo em comum: são todos sacerdotes. Uns aplicam a lei dos homens, outros trabalham com a lei divina, todos cuidando de seus respectivos rebanhos. A postura sacerdotal, distante e respeitável, convém ao magistrado não é a toa, e os sacerdotes religiosos também acolhem e cuidam de suas ovelhas, tal como juízes fazem com suas partes, processos, seus jurisdicionados.
São funções sociais símiles, muito parecidas, portanto. E o Ministro Alexandre de Moraes votou recentemente pela condenação de um pastor evangélico a uma pena em torno de 17 anos de reclusão. Ainda não está decidido, mas, vocês sabem, o “voto condutor”, que orienta aos demais membros do STF, é sempre o do Ministro Alexandre. Os dois dissidentes, Nunes Marques e Mendonça de Barros, infelizmente são irrelevantes para formar maioria.
Cuidado!
Tenho muito cuidado ao tratar dos atos de 8 de janeiro aqui. Não porque tenha medo de retaliações. Tomo cuidado ao tratar dos atos do 8 de janeiro porque, como escriba, tenho o mesmo grande medo que tenho como juiz que sou: ser injusto. É um medo visceral, que sempre me acompanhou, tanto que, na dúvida, não opino, não decido, não condeno. Na dúvida fico na dúvida, para não ser leviano.
Os atos de 8 de janeiro representaram, sim, um marco, um paradigma, na história da democracia brasileira. Um bando de idiotas contava com as forças armadas para uma intervenção militar. Como não vieram os milicos, ficaram com cara de bobos e resolveram partir para a quebradeira, para a confusão e o vandalismo. Não tinha nenhum santo ali. Quem não quebrou e vandalizou estava do lado apupando, dando força, incitando. É o tal do crime multitudinário em que é impossível, e desnecessário, dissecar minuciosamente a conduta de cada um dos participantes do delito, dos autores do crime, porque é crime de bando, crime de confusão.
Vândalos multitudinários
Só que, à luz da legislação penal vigente e, mais ainda, dos princípios que orientam a aplicação das penas no Brasil, as condutas multitudinárias ou não daquele bando de arruaceiros não deveriam gerar mais do que dois ou três anos de detenção para os baderneiros, substituídas as penas por prestação de serviços comunitários ou multa.
Vândalos que depredaram agências bancárias na paulista foram condenados assim. Membros do MST que invadiram a fazenda de FHC em Minas Gerais foram condenados assim. Até esta etapa polêmica da história da República a grande maioria dos manifestantes pró ou contra qualquer coisa, que exageraram na dose e partiram para o vandalismo, sequer foram identificados ou condenados.
Na invasão do Capitólio norte americano os manifestantes pró Trump já estão todos soltos, só ficaram com penas substanciais e atrás das grades os bagunceiros que agrediram policiais – por lá, um crime grave. Por aqui, para muita gente ignorante, a culpa seria da polícia que os provocou.
Covardia política?
E por que as forças armadas não acudiram aos manifestantes “patriotas” do 8 de janeiro? O que os comandantes das Forças Armadas temeram, com bastante razão, foi o mesmo revisionismo histórico que os guindou ao panteão de heróis em 1964 quando, tomando as dores da nação, depuseram a um presidente que ninguém queria. No entanto, poucos anos depois, foram tratados pelo mesmo povo como fascistas, reacionários e torturadores. Ou seja, “a mão que afaga é a mesma que apedreja, o beijo amigo é o prenúncio do escarro” para lembrar do poeta Augusto dos Anjos. Os militares aprenderam com a História. Intrometer-se na política de um país dividido, para um lado ou para outro, mais cedo ou mais tarde implicaria em uma inevitável releitura da História. Os militares, heróis de hoje para muitos, seriam os vilões de amanhã para a maioria – como em 1964.
Novidade jurídica
Os manifestantes do 8 de janeiro foram enquadrados em uma nova lei editada às pressas, durante a pandemia e sem nenhum alarde, porque já estava escandalosamente impossível sustentar a vigência da antiga Lei de Segurança Nacional. Como sólidos manuais e todos os entendimentos de todos os constitucionalistas sempre defenderam a tese unânime de que a LSN estava em desuso e que de nada valia após a Constituição Federal e por causa dela, só o STF a utilizava como parâmetro para impedir manifestações, como as de 7 de setembro sob a presidência de Bolsonaro, como na ameaça de paralisação de caminhões e do agro, incitada pelo cantor Sérgio Reis, um ano antes – esse era o problema: visibilidade demais dos conservadores em maior número. E só havia a vetusta Lei de Segurança Nacional para coibir aos manifestantes.
Estava difícil defender as aparências diante das gritantes inconstitucionalidades da lei antiga. Então, não durante o apagar das luzes, mas durante o black out do auge da pandemia em que só se falavam de máscaras, vacinas e kits, fez-se a luz! Criou-se o art. 359-L do Código Penal para coibir manifestações, geralmente de um lado só da política, porque hoje o outro lado não tem vulto para ocupar um ginásio coberto. Ou seja, como não se podia mais defender a indefensável Lei de Segurança Nacional e porque era necessário coibir manifestações da “turma do Bolsonaro”, criou-se uma legislação penal nova, duríssima e casuísta.
Toda lei casuísta é mal pensada, mal intencionada e acaba mal – e faz inúmeras vítimas pelo caminho. O problema da conceituação jurídico penal dos denominados “crimes contra a democracia” é que sua caracterização depende de muito subjetivismo e de muita interpretação pessoal. Eu já disse isso aqui: não é possível conceituar o que atenta contra as instituições e o que é mera opinião ou manifestação de pensamento. A princípio (a princípio!) uma manifestação em um domingo, com os poderes da República não funcionando, seus representantes de recesso e férias, e sobretudo uma manifestação desarmada, não teria o condão de impedir o funcionamento das instituições da República, de subverter a ordem ou sabotar a máquina administrativa ou a gestão pública.
Matando gente morta
É por isso que os críticos do julgamento dos atos de 8 de janeiro informam que, fosse aquela quebradeira um golpe de Estado, seria um crime impossível. Ninguém toma o poder, ou destrói instituições, desarmado e publicamente. Não é que aqueles manifestantes fossem quixotescos guerrilheiros pretendendo alcançar a glória de destronar Lula e os ministros do STF com bodoques ou estilingues. É que eles jamais tentaram isso. E, se tentassem (eis aí o ponto), jamais conseguiriam. Conseguiram apenas o óbvio: sua prisão.
O crime impossível ocorre quando o meio empregado ou o objeto visado pelo criminoso, na prática do delito, são inapropriados e ineptos, ainda que realizada a conduta. É o caso do sujeito que dá uma facada para matar a vítima que já está morta, vítima de um infarto fulminante. Ou furtar uma carteira que, sem que o ladrão saiba, é dele próprio. Ou dar um tiro de festim no inimigo, acreditando que a munição é real: só mataria se fosse de susto. As ações do 8 de janeiro, para muitos juristas brasileiros, foram mera fanfarronice que jamais aviltaria, jamais impediria, o regular funcionamento das instituições democráticas brasileiras.
É por isso que, quando morre na papuda um réu preso pelos atos do 8 de janeiro, ou quando se condena a um pastor evangélico ainda preso pelos mesmos atos, quando ainda há réus presos até hoje sem julgamento por aqueles atos, é tão assustador, tão criticado. Não é (atenção) que não existam centenas de presos sem sentença nos presídios brasileiros, ou que não existam centenas de presos mortos em cadeias do país, ou que sacerdotes religiosos não possam ser presos e condenados. Não. O que assusta é isso acontecer por conta de ações com gravidade intensamente, imensamente menor do que aquela roupagem, aquela definição, dada por uma lei nova, polêmica, imatura e casuísta, que na prática recria a famigerada figura do “crime político” ou do “crime de opinião”.
Os processos contra Bolsonaro
Já falaram que Jair Bolsonaro é genocida, porque geriu mal o país durante a pandemia e por causa dela. Já disseram que mandou matar Marielle e, agora, desbaratada a quadrilha responsável por aquele homicídio terrível, teimam em ainda procurar “outros mandantes”, de olho no filho 02 do bom capitão. Quando esfriou o caso Marielle, partiram para cima das joias de Michele e, não satisfeitos, da carteira de vacinação de Jair Bolsonaro. Por fim, querem processar o ex-presidente por caçar baleias.
Não basta aos detratores ideológicos do capitão ganharem (?) dele a eleição, ou toma-la (entendam como quiserem), não basta sua lacração social e sua inelegibilidade. Querem varrê-lo do mapa e prendê-lo e a todo o seu clã. Jair Renan, o filho 04, só esperaram alcançar a maioridade para começarem os processos e a pequena Laura, ainda menor, é alvo de manifestações pérfidas e ofensivas em redes sociais, inclusive por parte de gente de imprensa.
O mundo não é binário
No Brasil, em certo sentido compreensivelmente, as pessoas associam sempre as ditaduras e a violência política com a direita conservadora. É claro que o motivo é bastante visível e óbvio: a última experiência antidemocrática que de fato tivemos foi com um governo conservador, de direita, militar, imposto pelos canhões. Isto não quer dizer, contudo, que a regra geral seja esta e que as ditaduras e regimes de exceção sejam sempre de direita. Tampouco o oposto: não é por conta de nosso passado recente que podemos presumir que as esquerdas progressistas sejam sempre regimes democráticos avessos às práticas antidemocráticas.
As coisas em políticas não são binárias. Não é que toda direita é conservadora ou pró regime militar ou que toda esquerda é comunista e revolucionária. Há nuances, meios termos, híbridos. O que não é possível fechar os olhos, esquecer o passado e acreditar piamente que um regime que suprime liberdades de expressão e manifestação, que tenta tolher imprensa e juízes (juízes de verdade), tenta emudecer o Ministério Público e coactar a cúpula do Poder Judiciário, criando leis para impor sua única versão ideológica, criando pareceres e teses para defender tribunais e julgamentos de exceção, não é possível crer que um país desse, de direita, esquerda ou centro, que seja, é um país verdadeiramente livre.
O dito pelo não dito
“A forma inteligente de manter as pessoas passivas e obedientes é limitar estritamente o espectro da opinião aceitável, mas permitir um debate intenso dentro desse espectro”. (Noham Chomsky, linguista e filósofo norte americano).
RENATO ZUPO
Magistrado, Escritor, Palestrante