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Conversa fora

por André Rodrigues Pádua e Murilo Caliari
Por: . | Categoria: Do leitor | 05-06-2024 03:00 | 1586
Foto: Arquivo

André Pádua, meu estimado amigo de longa data, e eu, depois de muito tempo na atividade lúdica, entre papos e asneiras, proseamos sobre a importância da palavra impressa. Foi quando um de nós – não lembro quem – apontou o Jornal Sudoeste como agente imprescindível para o registro e fomento da cultura na cidade. Pensamos e se... E se lançarmos uma coluna dedicada à escrita? E se inventássemos uma maneira de canalizar e afugentar a frustração da não materialização dos nossos textos? E foi assim que contata-mos o jornal para falar da nossa intenção. Agora, vocês têm em mãos uma amostra dos nossos breves e despropositados esforços literários. Espero que se amarrem nestas tramas:

HORAS, ORAS
por André Rodrigues Pádua

O mundo anda mesmo às avessas. Se antes quem dispunha do tempo para fazer as coisas éramos nós, hoje mais parece que são as coisas que dispõem do tempo para fazerem seus caprichos conosco. Nesse rapto sutil de pedacinhos de dia, acabamos órfãos dos momentos que nos permitem fazer, além das coisas, aquilo que também é de suma importância - descansar, rezar, tomar sol, amar, e por aí vai.

Foi na busca por resolver esse problema que um estimado conhecido me comunicou que teve a ideia de reorganizar os números de seu relógio de ponteiro, aproximando-os entre si para que sobrasse mais espaço no mostrador, espaço esse que, uma vez preenchido com mais números, reverteria, como consequência, em um maior estoque de tempo no dia. Arrematou, com convicção, que, agora sim, seria possível, além das coisas do dia-a-dia, fazer tudo aquilo que igualmente interessa.

O resultado da empreitada? Ainda não consigo dizer, infelizmente. O estimado conhecido combinou de me encontrar na data de hoje às nove horas na praça da Matriz para me contar se a ideia foi bem sucedida ou não. Como já era quase meio-dia sem que o atrasado aparecesse, resolvi voltar para casa a fim de escrever este relato e, depois, almoçar.

A VERDADE É SIMPLES COMO DOIS E DOIS SÃO  CINCO
por Murilo Caliari

Dias atrás, houve alguém que disse que a verdade é muito lógica e óbvia porque ela é verdade, e não tem problema. O que deu bastante segurança e me deixou bem feliz.

É quase perfeito o mundo onde uma coisa significa ela mesma e ficamos sossegados numa certeza.

É maravilhoso como é fácil de aceitar quando não há dúvida. 

A verdade é bastante óbvia pra duvidar que uma semente vira árvore e que dos ramos de um galho crescem folhas. Porque ela é real como o azul não é vermelho e tão possível como uma bicicleta tem rodas e pedal.

O céu nasce com o sol e a voz do outro chama alguém. Mais comum seria perguntarmos se de fato as coisas têm sentido. Mesmo sendo lógico que as coisas são elas mesmas, parece estranho acreditar. Sabemos que um assunto chega no outro. E assim, seguimos a linha de um raciocínio, emendamos uma questão e analisamos, no final, o resultado. Logo, parece bem evidente a certeza dentro da lógica. 

Existem circunstâncias e situações que nos envolvem na possibilidade do encontro com o acaso. Tem objetos que são fabricados, mas há natureza em tudo. 

Uma pedra, por exemplo, é da forma dela, do jeito que a gente vê. Ela permanece intac-ta, sustentando a gravidade na matéria. Mas por que está ela justo ali? Talvez foi quebrada de outra parte maior. Ou, quem sabe, foi trazida e jogada ali de lado por um arranjo inexplicável?

Logo, voltar pra casa pode implicar chutá-la e fazer dela pedra de novo. Rolando arrastada pelo atrito. E assim, chutada e seguindo, ela vai embora, fica pra trás... Até amanhã!

Daí que certa vez ouvi falar que mesmo quando uma antena de luz foge do raio da visão ela continua em cima do prédio. Bem como o carro veloz que dobra a esquina continua sendo o carro veloz. Alguém que trilha seu destino dentro do automóvel, chega até sua casa, abre a porta e faz tudo de um jeito próprio. Porque cada um se instala de maneira particular dentro de seu habitat. E isso é verdade e, portanto, lógico. 

Ontem, voltei pro meu quarto, li jornais, assisti a um documentário sobre a vida dos pinguins, pintei um quadro, me despi e me enrolei nas dobras das cobertas. Não conseguia pregar os olhos, por mais que tentasse, o sonho não me alcançava.

Lembrei daquele carro. Por onde anda? Transportando contrabando; talvez preso em algum engarrafamento; ou estropiado numa oficina; quem sabe, indo pra um jantar de família; pior, dando fuga de uma blitz, se desequilibrando pelas faixas de uma rodovia? Minha certeza é que faz uma eternidade desde sua partida. E me pareceu lógico não existir mais hoje.

O digital do relógio marcou 23:47 e caí no sono. Minha cama parecia uma jangada balançando em alto mar. O carro voltou a dobrar a esquina e tudo fazia sentido.