por Murilo Caliari e André Rodrigues Pádua
Revisão por Gabriela Lages
Para brindar o momento, mesmo que atrasados, viemos homenagear os apaixonados nesta edição do Conversa Fora. Como sabem, quarta-feira passada foi Dia dos Namorados, e para não passar batido, entregamos de corpo e alma nossas mais dedicadas declarações de amor.
André Pádua, como sempre, nos surpreende com seu texto elegante e desenvolto, dessa vez narrando as nuances e variações do gesto de presentear no ato romântico.
Uma fórmula delicada de atingir reflexões existenciais através do que parece frívolo e buscando, mais uma vez, elogiar a simplicidade da nossa alma. Existem mil maneiras de presentear a pessoa enamorada, e aqui ele explica e exem-plifica as maneiras de chegar a tal fim.
De outro modo, em contraste, lanço eu a correspondência fictícia do personagem inventado Carlos Alberto, que se esforça aparentar nobreza na patética explicação do atraso. E que narra uma desventura (ou uma desculpa) que explica sua falta.
É, estamos num tempo que é difícil acompanhar o calendário. As datas festivas passam atropelando os compromissos. Mas o amor... Como dizem, o amor não tira férias! Há sempre outro dia para festejar tal deslumbre. Brindemos, festejamos. Nunca é tarde para dizer o que sentimos. Vamos lá.
Um conselho ou quase isso, por André Pádua
- O melhor presente para o Dia dos Namorados? Bom, é imprescindível que seja algo sintético. Em primeiro lugar, tem de conter pelo menos alguma coisa, aliás, alguma coisa não, tem de dizer o máximo possível sobre a pessoa presenteada. Por exemplo, um bom presente seria algo do qual esta esteja necessitada, como um relógio, uma gravata, um kit de maquiagem ou um par de fones de ouvido.
Por outro lado, é fundamental que o presente reflita o próprio relacionamento dos consortes envolvidos, afinal, trata-se de uma celebração do afeto e não de mero fechamento de balanço patrimonial. Para os casais atléticos, um capacete de andar de bicicleta ou uma garrafa térmica, quem sabe; para os casais mais intensos, uma garrafa de vinho para ser apreciada a dois; para os casais à distância, um porta-retratos com uma fotografia daquele dia.
Finalmente, é também muito importante que o presente remeta à pessoa do presenteador, isto é, que seja um objeto capaz de ruminar sua presença e garantir que ela se perpetue e seja sentida por quem tenha sido presenteado.
Pode parecer redundante, mas não é demais lembrar que se trata de um “presente”, e não de um “ausente”, certo? Assim sendo, os mais discretos podem optar por algo como um vaso decorativo, que, apesar de parecer simples, é no fundo uma estrutura imponente, sóbria e sempre constante no dia a dia de seu dono, remetendo mesmo ao compadrio tão necessário às relações de longa duração.
Alguém de temperamento mais estomacal pode preferir uma generosa cesta de café da manhã, mimo esse de especial distinção, já que associa a paixão ao apetite e à digestão, processos vitais e de primeira intimidade para todo e qualquer ser humano.
Ah! Eu já quase ia me esquecendo das flores. Além de possuírem cor e odor, também elas vivem e sofrem, de modo que receber um ramalhete implica dele cuidar como se cuida de quem se ama. É, por isso, o presente por excelência dos mais românticos...
- E os indecisos, como presenteiam?
- Hum… os indecisos? Bem, eles vacilam, escolhem alguma coisa, sentem saudades, vão atrás de algo melhor, hesitam e no final acabam escrevendo uma crônica perdida e atrasada de Dia dos Namorados.
Correio elegante, por Murilo Caliari
Pratápolis 19/6/2024 16:06
Meu amor,
Peço-lhe desculpas pelo atraso. Pode parecer complicado acreditar nestas parcas palavras as quais aqui apresento para justificar minha ausência. Minha majestosa concubina, é de vosso conhecimento que não sei mentir, e peço que entenda as desventuras que o acaso me pregou. Quero dizer: justo quando estava terminando de digitar a carta que enviaria por SEDEX no Dia dos Namorados, o laptop pifou. Por motivos misteriosos, a máquina apresentou falhas técnicas e encheu o quarto de fumaça. Sorte do destino ou apenas coincidência, levantei pra encher um copo d’água no exato momento que o computador explodiu. Voaram as teclas pra cantos do quarto que, até então, eu desconhecia. Passei a noite catando os pedacinhos do sistema eletrônico enquanto praguejava aos céus minha desgraça.
Logo depois do ocorrido, agarrei-me à folha pautada do meu querido diário e iniciei de novo a declaração apaixonada por vossa alteza. Foi quando, envolvido nessa atmosfera de vassalagem e amor cortês, levantei-me para buscar o envelope que envolveria à carta. E neste meio-tempo o segundo infortúnio veio à tona. Ao retornar ao quarto, horrorizei ao encontrar minha yorkshire Vanessa estraçalhando a brochura do caderno e mal pude decifrar a cursiva picotada por seus dentinhos afiados.
Não desisti. Aliás, sabes que sou empenhado no que se refere à poesia que jorra meu coração flechado. Na terceira tentativa, tranquei Vanessa no banheiro, desliguei a chave de energia e comecei a escrever na parede todas as palavras mais lindas que me ocorriam ao evocar a presença angelical de tua figura. Infelizmente, logo quando estava na terceira estrofe de um soneto metrificado, tocam o interfone reclamando do barulho da música. Posso jurar de pé junto que o som da vitrola não ultrapassava os 70 decibéis, isso me deixou atordoado e depois bastante nervoso. É de vosso saber que meus nervos andam sempre à flor da pele e que uma vez desestabilizado sou capaz das piores atrocidades.
Saí de cena. Impulsionado pela revolta bati na porta do vizinho, que supus ser o autor da represália. Mal ele abriu a porta, agarrei-o pelo colarinho e desferi um tapa em seu rosto. O que fez com que furiosamente o tal vizinho do 501 revidas-se com firmeza. Acertou-me em cheio e a confusão não acabou por aí, deu até polícia. Não entrarei nos detalhes sórdidos, nem narrarei a desordem dos fatos.
Ocorre que estou agora numa casa de repouso para aliviar-me do maldito transtorno (fui interditado). E só aqui pude finalizar minha bendita carta de Dia dos Namorados.
Feliz dos namorados atrasado, meu amor. Peço que responda o mais breve possível, o endereço é Rua dos Ramalhetes 357, ALA B, Bairro Concórdia.
Com ternura, seu e sempre seu
Carlos Alberto Jefferson.