por André Pádua
Estaria a minha atividade como cronista com os dias contados?
É o que parece. Basta um clique de mouse para que, por meio do comando adequado e no curto respirar de poucos segundos, as tecnologias de inteligência artificial nos vomitem, em uma furiosa náusea digital, um texto de razoável estrutura acerca do tema de nossa preferência, dotado da mais exata correção ortográfica e sintática e alimentado pelo que há de melhor na história da literatura mundial em termos de crônicas.
Eu, por outro lado, levo um tempo indefinido para elaborar um texto como este que você agora lê. Horas, dias, semanas? Não sei dizer, e penso que nem mesmo seria possível fazê-lo, já que os momentos que ganhamos perdendo tempo com outras coisas parecem não se afinar com a suma disciplina dos números. O fato é que minhas engrenagens, feitas à base de vísceras, sequer me permitem começar as coisas pelo começo. Quando algum tema se apresenta, preciso capturá-lo ainda vivo, em efervescente movimento, e domá-lo; se penso que finalmente o assunto está sob meu controle, outras abordagens surgem, sedutoras, e me obrigam a abandonar boa parte do que já estava pronto. Desse passo até o texto ficar pronto – se é que um dia realmente fica – há ainda muita briga com as vírgulas, com a ordem dos termos nas frases, com as palavras que fogem e com as palavras que insistem em ficar à minha revelia. E tudo isso para, no fim das contas, eu terminar pensando que o resultado poderia ter sido melhor.
Pensando bem, é mesmo um alívio. Pelo visto, falta à inteligência artificial muito o que aprender para conseguir tropeçar com toda essa precisão.
- primeira parte -
por Murilo Caliari
Meus dias são quase os mesmos. Acordo, trabalho, namoro e busco distrações. No caminho de volta pra casa costumo parar no bar do Valle e ficar de conversa fora com Dr. Olinto. Hoje expus meu desejo de inserir o conteúdo de nossas elucubrações nesta coluna semanal. Ele assentiu.
Dado minha canseira rotineira, decido narrar de maneira resumida, sem grandes rodeios nem floreios. Era 17H:18 e ao dobrar a esquina do bar logo o avistei. Sem cerimônia, puxei uma cadeira para sentar-me ao seu lado. Como de costume ou tradição ele estava diante a TV. Explicou-me, num tom espirituoso, que havia lesionado o joelho e por isso estava impossibilitado de disputar os jogos de eliminatória Eurocopa.
Nós dois olhávamos a partida, o cronômetro cravara 90 minutos. No último momento, a Itália descontou o gol da Croácia e o placar foi alterado para 1x1. O locutor foi à loucura.
Enquanto escrevo, busco me apoiar na lembrança e reviver o teor da prosa. Me vejo numa pracinha e ouço o som dos cascos da polícia montada atravessar a avenida. Penso na sorte que o acaso me trouxe ao firmar essa amizade.
Hoje ele retomou ensinamentos do Kong Qiu (Confúcio), falou do caminho do meio de Lao Tsé, citou Voltaire ao tentar definir a metafísica “é como um cego de óculos escuros, num quarto escuro procurando um gato preto que não está lá”. Mas o ensinamento mais terno veio quando eu estava indo embora.
A neta do Dr. Olinto tem oito anos e gosta de brincar de teatro de bonecos. Ele costuma visitá-la semanalmente e lhe presenteia com bibelôs e fantoches. Uma personagem importante nas peças era o Elefante. Um dos chifres do elefante se soltou e caiu. Ao observar o acidente, meu amigo médico escondeu o Elefante numa gaveta e disse à netinha que o havia levado ao hospital. No segundo dia, segurou a mentira até encontrar uma boa cola para o reparo. No terceiro dia retornou com o personagem em ótimo estado. A criança o questionou: “Vovô, ele estava mesmo no hospital?”. Intimidado pela pergunta, sabendo que a neta sabia da mentira, decidiu relevar a tramoia. Magoada, a netinha respondeu: “precisava mentir pra mim? Poderia ter me contado, eu entenderia”.
O pediatra aposentado confessou que a partir desse episódio teve uma lição ética, algo como “não se deve enganar uma criança”.
Pediu-me para inserir tal história na crônica. Comentou que também redigirá sua versão das conversas. Com garranchos horrendos anoto a ocasião na esperança de ter tempo para passar a limpo e entregar-lhe amanhã depois de fechar o ponto.