ENTRETANTO

Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 06-07-2024 03:59 | 1224
Foto: Arquivo

Reincidência
Volto aqui à nova roupagem jurídica que o STF deu ao “ex-crime” (vamos chamá-lo assim) do art. 28 da Lei de Drogas: porte para uso de entorpecentes proscritos. Como era crime até ontem, o cidadão já condenado por ele teria direito à revisão criminal para retirar sua condenação dos seus antecedentes. E o condenado de novo que teve declarada sua reincidência por conta condenação anterior pelo “ex-crime”, com aumento de pena por conta disso, teria direito à revisão criminal também, para readequar a denominada dosimetria da pena, desconsiderando-se esta reincidência.

Entenderam a bagunça? É o seguinte: o sujeito condenado por porte pra uso pode procurar a justiça para ser “descondenado” (tá ficando na moda isso) e assim limpar seu nome. Já o cidadão que tinha condenação como usuário, cometendo novo delito, não poderia mais ser considerado reincidente – porque o primeiro crime deixou de sê-lo conforme a decisão recentíssima do STF.

Vão pipocar ações na justiça, novos recursos, com resultado zero de pacificação social. Muito antes pelo contrário. Eu já disse aqui e repito: não é concebível se punir quem vende drogas e não punir quem compra. O mais lamentável de tudo é que a decisão do Supremo não diminui burocracias e esforços do aparato jurídico repressor estatal, polícias, Ministério Público, Poder Judiciário. Muito antes pelo contrário. A posse para uso de entorpecentes não passa a ser uma conduta irrelevante – configura agora “ilícito administrativo”, como uma infração de trânsito. Só que vai dar polícia, juiz, promotor, do mesmo jeito. Inutilmente, ouso dizer.

Pode ou não pode?
Se não fui claro e minucioso, vou tentar sê-lo. A conduta do mero usuário que porta para uso próprio certa quantidade de drogas foi tão somente “descriminalizada”, ou seja, deixou de ser crime por decisão colegiada do STF, por maioria.

Isto é diferente da liberação ou da legalização. E o problema também é este. Mas vamos entender a diferença.

Quando o legislador ou o Poder Judiciário descriminaliza uma conduta, diz que a conduta deixou de ser crime – não a legitima. Apenas afirma que doravante aquela ação, conquanto ilícita, não pode mais ser punida como se crime fosse, gerando maus antecedentes, inclusive.

A liberação da maconha, ou de qualquer outro tipo de droga até aqui ilícita, seria diferente. Através dela, se permitiria seu uso sem qualquer represália do poder público e se cogitaria regulamentar-lhe a venda. A legalização, aí sim, seria um “liberou geral”, autorizando sua produção, ainda que doméstica, bem como venda – tal como é no Uruguai.

Nenhum país do mundo – eu afirmo! Nenhum – simplesmente descriminalizou as drogas, sem tocar no assunto de sua produção, cessão, comércio, plantação. Enfim, sem cuidar do usuário. A decisão do STF que torna o porte para uso de drogas um “ex-crime” causa um efeito reverso para o usuário. Reverso e terrível, na minha humilde opinião. O coloca à mercê do traficante, que continua sendo seu habitual fornecedor de entorpecentes proscritos. Como a decisão do Supremo não legaliza o uso, não cria tampouco zonas livres de consumo, e assim mantém os usuários em guetos, biqueiras, bocas de fumo e cracolândias da vida.

Direito Penal do bem
Lembremos que uma das finalidades da pena é ressocializadora. O Direito Penal protege e cuida, quando pune. Ao longo de minha já longa carreira como magistrado, da qual tenho muito mais passado do que futuro, por diversas vezes puni pequenos delinquentes, infratores de menor potencial ofensivo, e com isto os retirei da sarjeta e os emendei. Se tornaram gente de bem e se livraram de seu pior inimigo: eles próprios.

É claro que há gente incorrigível, há psicopatas e criminosos que não se emendam – mas há muita gente que se recupera através da pena, que não precisa ser necessariamente cadeia, regime fechado ou semi-aberto para ser pena e para ressocializar. Lembremo-nos aqui que há dois tipos de “famílias” de penas no Brasil: as penas privativas de liberdade e as restritivas de direitos. Desde 2006 não se punem com reclusão ou detenção (penas privativas de liberdade) aos usuários de drogas, no país. Nem por isso se deixou de puni-los de alguma outra forma, e isso já beneficiou muitos deles.

Há possibilidades (ou havia) de aplicação de advertência a usuários, matrícula em cursos de prevenção às drogas, interna-mentos voluntários em clínicas e comunidades terapêuticas, limitação de fim de semana, prestação de serviços comunitários – esta última atrelada ao cuidado com dependentes químicos. Tudo isso sempre ajudou muito à sociedade.

Manter criminosa a conduta de usuários que portam para uso próprio drogas ilícitas não é mandá-los para a cadeia. Essa ilusão, esse factoide, essa verdadeira Fake News vem sendo buscada por determinados setores da sociedade com algum apoio de classes de intelectuais “do mal”. Porque eles sempre foram tratados pela justiça brasileira de maneira profilática, com aplicação de medidas do bem em seu favor. Ao menos, desde 2006.

O grave problema para os críticos da Lei de Drogas, ou do STF, ou os adeptos da legalização das drogas, continua intacto: a diferenciação entre as figuras do usuário e do traficante e a conceituação legal do que seria um “pequeno traficante” – com trato legislativo diferenciado. Na prática, os indexadores legais destas importantes distinções é bastante subjetiva, o que gera sim alguma perplexidade jurídica no meio dos operadores do Direito.

Factoides do mal
Os verdadeiros produtores de Fake News, de falsas notícias, o fazem para disseminar desinformação e lidar com isso para gerir o poder ou se aproximar dele, degenerando a ordem social e manipulando e deformando a opinião pública.

Digo isso porque o velho discurso vitimista de que a Lei de Drogas, e de resto todas as leis penais brasileiras, são utilizadas como ferramenta para distribuição de desigualdade social, e não para fomentar a paz pública – busca justamente desinformar e corromper.  É assim que se ouve muito que só pobres e pretos são punidos, que ricos possuem advogados e não vão para a cadeia e que a população carcerária é um retrato macabro da realidade brasileira e suas desigualdades sociais. Este último argumento vem de Foucalt, um dos mais distópicos filósofos que o mundo já conheceu, e que ousou dissecar problemas sociais do alto de sua cátedra acadêmica e sem se imiscuir nos meandros da miséria humana. Algo que policiais, advogados, juízes e promotores de todo o mundo fazem constantemente.

A verdade é bem outra. Criminosos não são “coitados” e não são tratados de maneira covarde pelo Estado. São, na verdade, cuidados. Na cadeia há nutricionistas e psicólogos prestando-lhes serviços os quais jamais tiveram acesso antes e fora da prisão. O Direito Penal brasileiro é mínimo a muito tempo: juízes ou absolvem ou dão pena mínima, é uma tradição nacional do nosso Poder Judiciário, lamente-se isto ou não.

O contrário e inverso é que acontece bastante: muito rigor e penas pesadas para bandidos do colarinho branco, banqueiros, gente rica, executivos de estatais e celebridades badaladas. O sujeito que tem poder, ou dinheiro, ou ambos, e que se senta no banco dos réus é geralmente tratado de maneira contundente pelos juízes penais. Novamente, critique-se ou não a esta postura, é o que geralmente ocorre no Brasil, porque juízes levam em conta, ao condenar e, principalmente, dosar pena, que aquele cidadão acusado teve condições de boa educação, boa família, boa formação e empregos, e ainda assim optou pela prática de crimes – o que torna sua conduta muito mais perversa aos olhos do julgador.

O criador de factoides precisa de um inimigo – é a retórica do “espantalho”. Tem que ter um inimigo para derrubar, para prosseguir na luta de sua vitimização. Como na crista da onda e do poder não mostra serviço, não consegue brilhar com luz própria pelos seus feitos, busca e cria defeitos nos outros – para “lutar” e acender holofotes para vislumbre das qualidades que o crítico mordaz, impiedoso e mentiroso nunca possui.

30 Anos do Plano Real
O Plano Real salvou a nossa economia e foi uma das maiores estratégias econômicas do mundo de todos os tempos. Toda a equipe responsável pelo renascimento de nossa moeda estável e forte foi para o panteão de nossa história como responsável por nos vermos livres da hiperinflação. Basta olhar para a Argentina de hoje, em crise econômica há mais de vinte anos, com sucessivos planos e dolarização de sua moeda, sempre com êxito escasso, esparso, tênue, intermitente.

Seríamos assim até hoje, não fossem Fernando Henrique Cardoso, Gustavo Krause, Pérsio Arida, Pedro Malan, Gustavo Franco, Edmar Bacha e André Lara Resen-de. E antes deles, um mineiro chamado Itamar Franco, que possibilitou a isto tudo.

O Brasil se perde atualmente em discussões ideológicas. Deveríamos ser todos mais pragmáticos, como são ingleses. Na terra do Rei Charles e dos Beatles, governantes são pagos, eleitos e fiscalizados para que… governem. Independente de credo político. É o que nos falta por aqui. Precisamos de menos lero-lero vitimista e existencial e mais cobrança por resultados.

O dito pelo não dito
Acho que deveríamos incluir na proibição todas as drogas [além da maconha]. Todas fazem mal. Mas a política de guerra às drogas não está funcionando” (Fernando Henrique Cardoso – político e ex presidente da República brasileiro).

RENATO ZUPO
Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor, Escritor, Palestrante.