• CONVERSA FORA •

Responsabilidade fiscal e Conversas com Dr. Olinto

por André Rodrigues Pádua e Murilo Caliari
Por: . | Categoria: Do leitor | 17-07-2024 03:00 | 133
Foto: Arquivo

Responsabilidade fiscal

por André Pádua

O político, em tom grave – gravíssimo – e com insana sobriedade, declarou em rede nacional:

— É preciso cortar gastos. Quanto a isso, não tem discussão. A equipe econômica apurou que, caso medidas urgentes não sejam tomadas, o orçamento público corre o sério risco de não fechar e as contas públicas podem estourar em menos de três anos. Como o rombo estimado é da ordem das dezenas, talvez centenas, de bilhões de reais, o brasileiro, infelizmente, vai precisar sentir na pele o esforço coletivo de manutenção da responsabilidade fiscal e da saúde do erário.

E prosseguiu, com austeridade, se justificando:

— Mas é como acontece com os gastos que temos no contexto de nossas famílias, não é? É a mesma lógica, elementar. Em casa a gente não pode, durante o mês, gastar mais do que ganha, porque senão acabamos endividados. Seguindo esse raciocínio, o governo informa que, em primeiro lugar, irá suspender os valores de alguns programas assistenciais, tendo em vista o impacto orçamentário das referidas quantias. Noutra frente, iremos intensificar a integração da iniciativa privada nos serviços públicos por meio de planos integrados de privatização, o que deve proporcionar maior eficiência e presteza no desempenho de tais atividades, otimizando os benefícios para o cidadão. Em relação ao funcionalismo, será necessário o congelamento temporário de reajustes de civis e militares, bem como a reformulação e reestruturação das carreiras para um modelo mais enxuto, que exigirá dos servidores o desempenho individual de uma maior variedade de atividades. Também estamos trabalhando em reformas no aparato administrativo que conduzirão à simplificação e facilitação das contratações temporárias de trabalho e de vínculos sem estabilidade, como elementos catalisadores atuação do governo. Enfim, o panorama de medidas apresentado é somente uma visão geral e será melhor detalhado nas próximas semanas, de acordo com o cronograma fixado pela equipe econômica.

Atenta aos informes oficiais e à saúde financeira doméstica, a família Souza, após intensa deliberação entre a matriarca e o patriarca, decidiu também implementar medidas caseiras de contenção de gastos: ficou decidido que as luzes somente poderiam ser acesas a partir das sete, no verão, e das seis e meia no inverno; o número de descargas diárias passou a se limitar a duas por pessoa; cada morador teria direito à carga de metade da bateria do telefone celular por dia e nos jogos de futebol, a televisão somente poderia ficar ligada por um dos tempos, a critério de quem estivesse assistindo. Por outro lado, as atribuições do filho mais velho aumentaram, o que lhe rendeu um acréscimo de 10% sobre a mesada; a mais nova, por sua vez, teve a renda cortada em 50%, ainda que mantidas integralmente suas tarefas. Finalmente, o sr. e a sra. Souza encontram-se nos trâmites finais de deliberação da extinção dos cargos de cunhado e genro, haja vista sua magnitude orçamentária, e cujas funções já são muito bem desempenhadas por sogro e sogra.

Conversas com Dr. Olinto

- parte 3 -
(O ser humano é um macaquinho metedor e guerreiro)

por Murilo Caliari

A primeira frase que escutei, quando puxei a cadeira ao seu lado e assistíamos Portugal contra França, foi que o ser humano era um macaquinho guerreiro e metedor. No restante, me falha a memória, então parafraseio o diálogo, mantendo a essência:

— Olha só Murilo, imagine só. Nesse mundo habitam cerca de oito bilhões de pessoas. Imagina quantas cópulas isso levou? Se estimarmos uma média de 10 atos até gerar um embrião, então temos 80 bilhões de cópulas. Isso não é incrível?

— Inacreditável, meu caro.

— Guerreiro eu digo porque temos algo de batalhador correndo em nossas veias. Morrer é muito simples, pode ser até patético. Um atropelamento, uma queda, uma doença incurável.

— Sim senhor, concordo plenamente.

— Você consegue se ver daqui 50 anos, quando tiver minha idade?

— Olha meu amigo, eu realmente acho que o mundo não dura nem mais dez anos.

— Curioso você ter esse pensamento. Sabe que minha filha fala a mesma coisa? Ela é bióloga, geneticista. Vou te contar uma história. Pode esperar eu contar antes de se levantar pra fumar seu cigarro?

  Nosso papo era partido pelo intervalo de um cigarro, hora ou outra eu me levantava pra soltar fumaça.

— Claro. Manda brasa.

— Então, Murilo, eu tinha um canarinho de estimação. Certo dia ele amanheceu morto, as grades da gaiola estavam entortadas e ele sem a cabeça. Supus que era um gavião que eu via voando nas imediações. No mesmo dia eu comprei uma espingarda de chumbinho e armei uma tocaia. Fiquei esperando-o chegar. Mas ele não aparecia. Contei pra minha filha sobre a investida. E ela ficou revoltada. ‘Pai, você não enxerga? O gavião teve que vir pra cidade por conta do desmatamento, das queimadas. Ele só está aqui, rondando a cidade, pra procurar comida. Ao menos ele é esperto porque a cabeça é onde se encontra mais proteína. Ele precisava daquele alimento’. É, ela tinha razão nesse ponto... Deixei a espingarda no quintal, até que enferrujasse. Às vezes me pego pensando que o mundo que a gente vive não vai durar mais que dez anos. Minha filha tem me falado isso com a maior certeza.

Com essa última frase seu olhar perdeu o brilho, ele o desviou pra um copo meio vazio na mesa.

Eu terminei minha coca-cola, despedi-me com um aperto de mão fraterno e sai do bar. Atravessei a rua. A noite começava a esfriar. Enfiei na cabeça o gorro que guardava na bolsa e me tornei mais um dentre as centenas de passantes. Os postes e as lanternas dos carros tingiam o asfalto de vermelho, laranja e azul. Eu só queria chegar macaquinho bem estranho.