ENTRETANTO

Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 03-08-2024 02:01 | 168
Renato Zupo
Renato Zupo Foto: Arquivo

Eleições na Venezuela
Temos todos de parar de tratar a Venezuela como o “bicho papão” da América Latina, ainda que por lá a democracia seja questionável ou inexistente para muitos. Na verdade, o venezuelano gosta do Chavismo e de Nicolás Maduro – e demonstrou isso mais uma vez nas urnas. Apesar dos indícios de fraude nas eleições, o simples fato do partido governista ter muitos votos, ter uma aprovação significativa por parte do eleitorado, demonstra que a situação por lá é bem menos feia em termos de opinião pública do que se pensa.

A candidata da oposição estava solta, fez campanha franca contra o governo Maduro e lembremos que as urnas eletrônicas venezuelanas são auditáveis e possuem comprovante de voto impresso. Aliás, Maduro criticou duramente e em oportunidade recente às urnas brasileiras, porque não possuem esta autenticação. Mesmo que se discuta a honestidade do resultado das eleições na Venezuela, a incrível constatação de que há milhares de chavistas por lá impõe a conclusão inexorável de que em nosso vizinho há uma ditadura consentida – se é que se pode falar em ditadura consentida.

O regime Chavista
A Venezuela vive um socialismo “democrático” sem alternância no poder e sem imprensa livre – o que lança nuvens de dúvidas sobre a legitimidade do seu regime político governamental. Tudo começou com o capitão do Exército Hugo Chavez que deu um golpe de estado em 1999 e governou aquele país por quatorze anos ininterruptos até morrer vítima de um câncer. Sucedeu-lhe seu vice, Nicolás Maduro, de 2013 até hoje, e ao que tudo indica assim continuará por muitos anos.

Para nós brasileiros é difícil entender a ausência de alternância no poder. Afinal, a tivemos mesmo durante os anos da “nossa ditadura” militar, com uma sucessão de generais na presidência através de eleições indiretas. No entanto, a perpetuação política na presidência não é uma exclusividade venezuelana, que o digam as repúblicas da Rússia, com Putin, e Hungria e Bielorrússia, além de algumas semidemocracias africanas. Tampouco, como se vê, é uma prerrogativa da esquerda socialista.

O argumento jurídico para sustentar este estado de coisas lamentável é a adequação do monopólio do poder às respectivas constituições de origem. É claro, estas constituições foram convenientemente moldadas e remodeladas para atender à perpetuação política pretendida pelos líderes da vez, presidentes com status de soberanos absolutistas.

Os Miseráveis
Na Venezuela há muita miséria e muitos de seus cidadãos buscam em países vizinhos abrigo econômico, sobretudo. Há, no entanto, miséria no mundo todo, principalmente na América Latina. Nos países mais ricos do mundo há moradores de rua e indigentes, “homeless” e pequenas cracolândias, o que não é uma prerrogativa brasileira ou venezuelana. Estas são questões sociais, contudo. Usuários de drogas e dependentes químicos são despojados pelo vício de seus pertences e lançados às ruas por falta de apoio familiar, e muitos deles optam por não se alistar em programas sociais porque nas ruas encontram acesso às drogas lícitas e ilícitas – o que confundem com o conceito de “liberdade”.

Isto não quer dizer que o país esteja na penúria e completa indigência, como muitos acreditam. Na Venezuela, conquanto em crise econômica, há ricos, gente graúda ganhando e gastando dólares, bairros elegantes, restaurantes sofisticados. Não há uma hecatombe humanitária por lá. O Chavismo socialista soterrou a economia venezuelana, mas de seus escombros nasceu uma nova elite parceira de Nicolás Maduro. É o que sempre repeti por aqui: sempre houve e haverá elites, não importa a ideologia do regime. Esta elite poderá ser econômica, militar, de servidores públicos ou monárquica, mas sempre haverá no cenário geopolítico mundial gente que manda e gente que obedece, por critérios de ocasião ou méritos próprios.

Crise há
O fato de um país estar em crise econômica não significa que  esteja à beira do colapso político. As eleições recentes da Venezuela demonstraram isto. Desde Hugo Chávez o país atravessa percalços sérios em seu mercado, com retenção de dólares, tabelamento de preços, escassez de produtos, com queda significativa do poder aquisitivo de seus cidadãos.

Este poder de compra venezuelano era o maior da América Latina até Chavez. Ao menos três vezes maior que o dos brasileiros daquela época, meados dos anos 1990. O povo em geral empobreceu em nome da “distribuição de renda” socialista. Como Winston Churchill já disse: no socialismo distribui-se igualitariamente a miséria. Neste contexto, como o socialismo se perpetua no poder através do voto popular? Vivemos uma revolução cultural com fortes trincheiras na mídia, na classe intelectual, nos meios acadêmicos e artísticos. Esse pessoal convence pinguim a comprar geladeira. Quando são imparciais tudo anda bem. Quando são compelidos pela força, pelo dinheiro ou por ideologia, a pender para este ou aquele lado, há problemas no que se chama legitimidade do poder.

O que é isto? Muitas vezes o procedimento político é conforme as leis, os gestores da nação são escolhidos e exercem o poder de acordo com sua constituição, mas sem respaldo popular. Ou seja, conquanto todo poder emane do povo e para o povo, este povo não assimila o exercício do poder e não o reconhece como legítimo. Apesar das leis e, talvez, por conta delas, ou de sua interpretação por juízes e tribunais, não se assimila a honestidade na investidura. Este problema é um fator de corrosão das democracias, hoje em crise.

De novo as urnas
Sempre que os políticos conservadores perdem o poder ou perdem eleições, questionam a idoneidade e a segurança dos meios de voto, impresso ou eletrônico – tem que parar com essa mania. Possuo vinte e cinco anos de carreira, presidindo eleições como juiz ao longo desta trajetória. Nunca (nunca!) soube de um caso concreto de urnas eletrônicas viciadas, fraudadas ou coisa que o valha. Nunca recebi uma representação oficial questionando com fundamentos técnicos a eficiência das urnas eletrônicas.

Se fraude eleitoral há, não é através das urnas. Pode ocorrer por meios outros, muito mais sutis e nem por isto surreais ou raros. A mídia pode ser descaradamente parcial e prejudicar a um candidato em detrimento de outro, ou pode ser comprada para calar sobre erros de uns e acertos de outros, ou pode haver perseguição judicial (“Lawfare”) sobre uma determinada vertente político-partidária.  Isto influencia para o mal o resultado das urnas porque torna tendenciosos importantes atores do jogo democrático, formadores de opinião, que deveriam permanecer neutros.

Também é fato que o serviço público, seja ele qual for, atua para o povo e pelo povo. Se um determinado serviço está sendo questionado, deve mudar ou ao menos se tornar mais transparente. Se parcela significativa dos eleitores do país deseja mudanças nos procedimentos de votação, físicos ou digitais, esta vontade deve ser levada em conta pelos gestores da nação. O caso dos Estados Unidos é emblemático: o país mais tecnológico do mundo não realiza eleições eletrônicas – por quê? Nem se cogita disto de modo mais sério, e ainda assim questionam o último pleito para presidente, no qual Trump perdeu para Joe Biden. De novo, aqui e acolá, se ataca o resultado pondo culpa nos réus errados.

Inteligência Artificial
O Tribunal de Justiça do Paraná foi o precursor na criação de um serviço de inteligência artificial que auxilia seus juízes a proferirem decisão. É um sistema robótico fechado de consultas, na verdade, é um otimizador de conteúdos específicos que poderão ser utilizados como fontes de referência para os magistrados por ocasião de seus trabalhos de pesquisa inerentes à produção de despachos, sentenças e outras decisões corriqueiras na rotina forense.

Isto não quer dizer que seja, doravante, a inteligência artificial a decidir sobre o mérito das questões judiciais alvo de discussão no processo. Isto não retira a pessoalidade inerente à função do juiz, que é decidir, porque só ele é dotado de jurisdição – o poder constitucional de julgar. O CNJ recentemente disciplinou, regulamentou e chancelou a iniciativa paranaense, o que suscitou dúvidas e críticas distorcidas.

Poderíamos ser, doravante, julgados por robôs? Nada disso. A inteligência artificial atuaria como um otimizador de conteúdos, organizando material para consulta. Na prática e há bastante tempo só questões de alta indagação são submetidas ao juiz que, de resto, julga com base em precedentes de tribunais, atuando somente na análise da prova, esta sim impensável de ser decidida por autômatos virtuais. Sob esta ótica, a inteligência artificial não seria capaz de julgar o mérito das ações, o que demanda não somente conhecimento técnico ou pesquisa, mas um diferencial humano até aqui insubstituível por máquinas: malícia e bom senso, experiência de vida e um subjetivismo cultural que muda e evolui constantemente.

O dito pelo não dito:
A estupidez real sempre vence a inteligência artificial.” (Terry Pratchett, escritor inglês).

RENATO ZUPO - Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor Universitário, Escritor, Palestrante.