ENTRETANTO

Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 10-08-2024 01:18 | 1140
Renato Zupo
Renato Zupo Foto: Arquivo

Ebulição venezuelana
A Venezuela não é um país que esteja em colapso político e nem a única ditadura consentida das Américas, se é que existam ditaduras consentidas. Cuba, Honduras e Nicarágua são alguns dos exemplos continentais de ausência prática de alternância no poder e de regimes políticos que se perpetuam através de constituições defasadas ou convenientemente arranjadas para permitir a este continuísmo.

O país de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, um sucedendo ao outro desde 1999 e “ao infinito e além”, está em grave crise econômica há décadas, o que não significa que suas instituições tenham parado de funcionar ou que só existam miseráveis por lá. Há ricos e uma nova elite econômica simpática ao regime socialista, locais sofisticados e dólares circulando – infelizmente, na mão de poucos.

Não é o número de pessoas paupérrimas ou de cidadãos em situação de rua, homeless, que tornam uma nação mais pobre que a outra. Há indigentes em nações prósperas, inclusive no berço do capitalismo, os Estados Unidos da América. Esta população é carente por outras dificuldades; drogadição, falta de apoio familiar, problemas mentais. É claro, a falta de empregos e alternativas sociais ajuda a aumentar a massa de esfomeados, e por isso a Venezuela é um ponto fora da curva em termos de economia. Já foi a maior renda per capita da América do Sul, três vezes maior que a brasileira, e hoje é a mais baixa, tudo em consequência da política econômica socialista de divisão de renda, que na verdade divide a miséria – como dizia Winston Churchill. 

Problemas políticos
O que se questiona no sistema político venezuelano é a falta de alternância no poder, e a questão das supostas e seguidas fraudes eleitorais é apenas subjacente a isto. Para nós, brasileiros, é estranha a perpetuação na presidência da república por parte de um só governante, ou por este e seus seguidores, por décadas seguidas. Afinal, mesmo na ditadura, tivemos por aqui alternância no poder entre generais e através de eleições indiretas que modificavam os nomes na presidência da república durante o regime militar.

O continuísmo tampouco é uma anomalia exclusiva de republiquetas sul-americanas, ou mesmo da esquerda socialista, que o digam as repúblicas da Rússia, com Putin, e Hungria e Bielorrússia, além de algumas semidemocracias africanas. É claro que há regimes comunistas longevos também, bastando que nos lembremos de Cuba e da Coreia do Norte.

A Venezuela, portanto, é mais um exemplo, e não o único, de democracia corroída e questionável, em crise política fomentada pela sua economia claudicante, capenga. Se fosse uma ditadura que fomentasse a riqueza do povo, como na teocracia do Qatar, haveria menos barulho e críticas. Triste perceber que tudo é uma questão de dinheiro no bolso. A classe média se cala com o poder de compra preservado.

De novo as urnas
Políticos conservadores que perdem o poder ou dele são destituídos através de eleições livres estão com a mania de questionar a idoneidade e a segurança do voto impresso ou eletrônico. Tem que parar com isso.  Possuo vinte e cinco anos de carreira, presidindo eleições como juiz ao longo desta trajetória. Nunca (nunca!) soube de um caso concreto de urnas eletrônicas viciadas, fraudadas ou coisa que o valha. Nunca recebi uma representação oficial questionando com fundamentos técnicos a eficiência das urnas eletrônicas.

Se fraude eleitoral há, não é através das urnas. Pode ocorrer por meios outros, muito mais sutis e nem por isto surreais ou raros. A mídia pode ser descaradamente parcial e prejudicar a um candidato em detrimento de outro, ou pode ser comprada para calar sobre erros de uns e acertos de outros, ou pode haver perseguição judicial (“Lawfare”) sobre uma determinada vertente político- partidária.  Isto influencia para o mal o resultado das urnas porque torna tendenciosos importantes atores do jogo democrático, formadores de opinião, que deveriam permanecer neutros.

Também é fato que o serviço público, seja ele qual for, atua para o povo e pelo povo. Se um determinado serviço está sendo questionado, deve mudar ou ao menos se tornar mais transparente. Se parcela significativa dos eleitores de um país deseja mudanças nos procedimentos de votação, físicos ou digitais, esta vontade deve ser levada em conta pelos gestores da nação. O caso dos Estados Unidos é emblemático: o país mais tecnológico do mundo não realiza eleições eletrônicas – por quê? Nem se cogita disto de modo mais sério, e ainda assim questionam o último pleito para presidente, no qual Trump perdeu para Joe Biden. De novo, aqui e acolá, se ataca o resultado pondo culpa nos réus errados. 

O aeroporto de Roma
O Direito não é (mesmo!) uma ciência exata. A Procuradoria Geral da República denunciou  brasileiros que ofenderam ao Ministro Alexandre de Moraes, e seus familiares, no aeroporto de Roma. Já se tinha pedido o arquivamento do inquérito, agora concluído com indiciamento e acusação formalizada. Além disso, segundo inúmeros especialistas em Direito Penal,  os supostos crimes teriam ocorrido em solo  e jurisdição italianos e seriam impuníveis aqui. Outros tantos defendem o procedimento e seus incidentes, considerando-os possíveis e plausíveis à luz do Direito.

Na verdade, o arquivamento de inquéritos e investigações policiais é sempre provisório – será reaberto com fatos ou evidências novas, sempre que necessário, e o Ministério Público pode modificar seu entendimento ao longo destas investigações, ou mesmo durante as ações penais, os processos judiciais penais propriamente ditos. No caso concreto, Dias Toffoli não acatou o arquivamento, pedindo novos esclarecimentos, que vieram e fomentaram a denúncia dos indiciados pelo novo PGR. Se arquivado estivesse, seria difícil justificar a reabertura do inquérito sem a aparição de provas ou fatos novos, indícios que sustentassem uma nova visão do caso pelo Ministério Público, que é o titular da ação penal, ou “dominu litis”.

Quanto ao processamento dos ofensores de Alexandre de Moraes, por crimes contra a honra ocorridos em solo italiano, vale aqui o princípio da extraterritorialidade em matéria penal. A regra geral é que são crimes puníveis no Brasil aqueles cometidos em solo brasileiro, ou em aeronaves ou embarcações brasileiras, ou em corpos diplomáticos ou embaixadas brasileiras no exterior.

Esta é a regra, que comporta exceções, elencadas no art. 7o do Código Penal. Dentre estas, a lei prevê que o caso lá fora pode ser julgado aqui se o autor do crime for brasileiro e a lei estrangeira também considerar o fato criminoso, sem ter processado e julgado já por lá ao cidadão nacional. Ainda aqui, há juristas que discutem a esta possibilidade, porque seriam infrações de menor potencial ofensivo (a calúnia e a injúria sofridas), que impediriam o prosseguimento da ação sob a ótica da legislação brasileira. Há, contudo, causas de agravamento de pena, porque a vítima é agente de estado. Então, o processo penal foi deflagrado e irá prosseguir.

Família é sagrado
Não importa que a vítima seja o magistrado mais questionado da história da república, acompanhado de seus familiares. Família é algo sagrado e não está correto que se ofendam as pessoas em locais públicos, muito menos por conta de sua atuação profissional e na presença de seus entes queridos.

É certo que o Ministro Alexandre de Moraes coleciona desafetos políticos e em meio à população em geral, resposta ao seu intenso protagonismo judiciário e à repercussão de seu temperamento, mas ainda assim seus familiares nada tem com isso e o magistrado merece respeito dentro ou fora dos tribunais, e privacidade quando em descanso ou de férias. O Direito é, principalmente, para os vulneráveis, as minorias, as periferias e aqueles que se encontram em berlindas sociais como os magistrados em geral, e Alexandre de Moraes em particular – principalmente ele.

Estranho que se exija o cumprimento das leis para proteger a um magistrado acusado por seus desafetos de desrespeitá-las. Não vou entrar neste mérito, aqui. Saliento que aprendi com meus pais e ao longo da vida que a gente faz o bom e o certo simplesmente porque é o bom e o certo, não para ajudar este ou aquele, e independente do merecimento da pessoa alcançada pela nossa boa ação, da repercussão de nossas práticas cristãs e sociais ou do reconhecimento, aprovação ou reciprocidade daí decorrentes.

Presidente aposentado
Joe Biden desistiu da corrida rumo à Casa Branca. No sistema eleitoral e político americano, o candidato só pode concorrer à presidência se chancelado pelo respectivo partido. A exceção é quando ele já ocupa a presidência dos Estados Unidos. Aí é sua a prerrogativa de decidir concorrer, ou não, à reeleição.

Como ninguém do partido poderia tirar Biden da disputa, foram necessários eventos externos para (na prática) forçá-lo a sair do páreo. Ele foi um desastre no primeiro debate presidencial contra Donald Trump, e o atentado sofrido por este seu opositor somente reforçou-lhe a imagem de herói americano. Correligionários, amigos e parentes do atual presidente também tentaram demovê-lo de suas intenções eleitorais, até aí em vão. Contudo, quando os doadores da campanha democrata ameaçaram negar seu indispensável patrocínio, a ponto de tornar a vitória cada vez mais fácil para o republicano Trump, Biden por fim capitulou. 

Joe Biden já estava nitidamente combalido quando concorreu à Casa Branca pela primeira vez. Fabricaram-no como a única alternativa para retirar Donald Trump da Casa Branca – e funcionou, como no Brasil também ocorreu quando ressuscitaram e descondenaram Lula da Silva para apear Bolsonaro da presidência. Só que Lula não está caquético, muito embora ande bem longe da sua melhor forma  política. Biden precisa descansar e jamais teve saúde para o importante cargo que ocupa.

O presidente dos EUA governa o mundo, para o bem ou para o mal. Dita as regras da política  econômica, depõe governos hostis, detém armamento nuclear com poderio para destruir o planeta. É um cargo que exige não somente boas intenções, mas disposição e vivacidade. Trump desempenhou bem estas funções por quatro anos e, se o jogo político  recomendava que saísse (o que é discutível), entregar os rumos do  país mais poderoso do mundo a um político-tampão com problemas de saúde não solucionaria  o problema.  Como só piorou.

O dito pelo não dito.

Lágrimas não são argumentos.” (Machado de Assis, escritor brasileiro).

RENATO ZUPO, Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor Universitário, Escritor, Palestrante.

RENATO ZUPO - Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor Universitário, Escritor, Palestrante.