O Homem do Baú
Silvio Santos morreu noventão, marcando a história da cultura de massas brasileira. Divisor de águas que criou o entretenimento dominical conectando humor, música, reality shows e vendas através de marketing direto e indireto (vou explicar isso).
Ele também foi um empreendedor e chegou, inclusive, a se enveredar pela política – brincou de tentar ser presidente da República, certa feita. Indagado por jornalistas sobre os motivos para se filiar a um partido de centro-direita, respondeu-lhes que foi o primeiro a convidá-lo e se filiaria a qualquer outro partido que o fizesse de antemão. Simplificou o que muitos de nós intuímos: não há identidade político partidária no Brasil. Já vi empresário e playboy filiando-se ao PcdoB, como já vi líder de movimentos sindicais atrelado ao PL de Bolsonaro, enquanto era de Bolsonaro.
Aliás, Sílvio criticava jornalistas e dava poucas entrevistas por conta disso. Dizia que não lhe adiantava responder perguntas quando a imprensa brasileira publicava somente a versão que melhor conviesse aos interesses políticos ou econômicos da ocasião. Foi o Sílvio, aliás Senor Abravanel, filho de imigrantes gregos, quem o disse, hein? Um homem de imprensa.
Traços comuns
Ao longo de sua trajetória significativa, grandiosa, Silvio Santos criou uma rede de Telecomunicações (o SBT), um banco (o Panamericano), cosméticos (a linha Jequiti) e, é claro, o Baú da Felicidade, além de planos de capitalização e um grupo hoteleiro. O Baú foi um antecessor tupiniquim da Amazon, antevisto pelo antiquíssimo apresentador Manoel da Nóbrega, que repassou o negócio para Silvio. Ele premeditou o sucesso que seriam as vendas à distância, em um tempo em que sequer se sonhava com internet.
Uma característica que acompanhou Silvio por sua longeva carreira foi o empreende-dorismo acoplado ao talento. E o talento só viceja, só vinga, quando há respeito às leis de mercado e à iniciativa privada. Somente em sociedades capitalistas com livre imprensa, eleições democráticas, respeito às instituições, em nações em que o Estado, ainda que capengue, funciona, só nestes berços é que nascem os gênios e as pessoas que fazem a diferença ao longo da história da civilização.
Acompanhemos, desde o século passado, aos grandes vultos históricos que, através das artes e da ciência, fizeram a diferença no mundo. Nenhum deles surgiu ou floresceu e frutificou em países comunistas, de economias totalitárias e aberrações antidemocráticas. Me digam de um grande escritor da Rússia Soviética, e lhes mostrarei que era um exilado ou perseguido pelo regime bolchevique. Me digam de Heidegger, grande filósofo da Alemanha nazista, e lhes direi que sua filosofia jamais sugeriu de fato o antissemitismo. Falem-me do poeta americano Ezra Pound, que combatia judeus e era fascista, e lhes direi que também era louco. Brilhantes músicos cubanos, que os há em profusão, tiveram que fugir de Cuba para exibir seu talento magistral nos quatro cantos do globo.
Ao contrário, me digam de algum gênio ou notável artista da Coreia do Norte ou da Venezuela de hoje. Não os há. Percebe-se onde a humanidade, de fato, progride, e onde não. O talento só se desenvolve sob incentivo, que pode até ser governamental. Para ser sincero, que ao menos os governos não atrapalhem aos grandes intelectos, já está bom. E que o mercado os acalente e abrigue, estimulando seus sonhos. Os gênios, quando brilham, iluminam a humanidade.
Marketing
Até o apogeu da Globo, as emissoras de TV alugavam horários nas suas grades de programação sem qualquer controle de qualidade sobre os programas exibidos e que pertenciam integralmente aos seus patrocinadores. Quando José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, assume a direção da TV Globo, isso acaba, e cria-se um “padrão Globo de qualidade” – doravante o controle da programação é exclusivo do canal e o patrocinador apenas anuncia seu produto e sua marca no programa.
Criava-se, assim, o marketing indireto no Brasil. O apresentador de TV interrompia seu show para anunciar uma marca de sabonetes, ou no intervalo “comercial” da novela se anunciavam geladeiras ou televisores, tudo sem vinculação direta com o programa exibido. Seu oposto, o marketing direto, foi reinventado por Silvio Santos, mais uma de suas genialidades. O produto exposto pelo anunciante passa a fazer parte do contexto do evento exibido. Se é uma novela, durante a trama a mocinha aparece fazendo compras em determinado supermercado, ou pedindo uma determinada marca de produto em uma farmácia. Em um programa de auditório, o apresentador passava a explicar os benefícios de comprar uma determinada marca de carro, ou simplesmente entrevistava um representante da montadora, ou sorteava a um produto anunciado pelo patrocinador.
A publicidade, ou propaganda, é uma ciência. É um ramo, aliás, das neurociências. Leva a retórica ao seu apogeu. Em poucos segundos, um anúncio publicitário deve convencer o consumidor a comprar ou contratar, seja o que for, gastando seu parco dinheirinho por impulso. Há regras para isso, técnicas, saber vender assim é uma arte, atingida em todo o seu fulgor e glória por Silvio Santos.
A força da palavra
Continua a divulgação das trocas de mensagens entre juízes, peritos e assessores do Ministro Alexandre de Moraes e em torno do inquérito das milícias digitais, interminável, há anos em andamento. O jornalista americano Glen Greenwald vai destilando informações receptadas, produto de crime, em doses homeopáticas. Assim fica em evidência, acumula rentabilidade, seguidores, monetização, patrocinadores, mídia. Ah, o dinheiro…
As pessoas subestimam a força das palavras, senão tomariam mais cuidado com aquilo que resmungam ou dizem ao telefone, e agora com aquilo que “teclam” em redes sociais e aplicativos de mensagens. Os conteúdos não tiveram sua veracidade questionada até aqui, só sua origem e a roupagem jurídica, a interpretação que a eles se dê. Ou seja, o Ministro Alexandre de Moraes ou seus colaboradores diretos, estes envolvidos nas trocas de mensagens, não disseram que o conteúdo não é verdadeiro. Dizem que não refletem condutas irregulares. Exatamente a mesma postura de Sérgio Moro anos atrás, quando o mesmo Greenwald revelou conversas do ex-magistrado com procuradores da Operação Lava Jato.
O conteúdo destas informações é privado e sua divulgação é crime, esteja ou não um jornalista à frente do estardalhaço. Seja qual for a interpretação que se dê às mensagens divulgadas, à luz do Direito os respectivos interlocutores não podem ser responsabiliza-dos judicialmente – isto é bom que se diga logo aqui e agora, no começo desse barulho todo. No entanto, palavra tem poder, como sabem os cristãos. Não é possível ao povo ou aos formadores de opinião, ou à mídia, esquecerem-se do que é revelado, com óbvios reflexos para a credibilidade das instituições da República, principalmente quando não se tomaram lá atrás providências contra a conduta dos invasores de dados e divulgadores de informações privadas e sigilosas, ou nada se faz agora. Dá uma sensação de impotência e impunidade.
Mas, afinal…
Do que se vazou até aqui das trocas de mensagens entre o pessoal do alto escalão do Poder Judiciário e peritos, denota-se uma suposta (!!!) inclinação destes protagonistas pela obtenção de provas já direcionadas à formação da culpa. Ou seja, juízes auxiliares, técnicos judiciários, assessores, não estariam (em tese) sendo imparciais na apuração da verdade real, que é o fim maior das investigações criminais e ações penais. É o que se critica do conteúdo – salientando-se aqui que há os que defendem a lisura do teor das conversas.
Exemplifico e explico. Um amigo engenheiro se viu envolvido em investigações acerca de irregularidades em obras públicas. Chamado a depor perante um delegado de polícia, ao fim de três horas de inquirição, já torto e tonto com perguntas que iam e vinham, sem objetividade ou redundantes, meu amigo indaga ao policial: “Afinal de contas, o que o senhor quer de mim?” O delegado respondeu: “Eu quero que você diga o que eu quero ouvir.”
Até mesmo por conta das recentes leis que modificaram regras da tramitação de inquéritos e da postura de policiais e juízes ao longo das investigações criminais, hoje o delegado de polícia é um primeiro juiz da causa. Deve buscar provas sem abrir mão de linhas de investigação, com isenção e imparcialidade, sem opiniões ou conceitos preconcebidos. Ou seja, deve estar propenso a assimilar a verdade que vier, sem guiá-la pelos rumos de suas percepções subjetivas, interesses políticos, ódios e amores.
Verdade indiciária
Instruir e julgar com base em verdades intuídas ou manejadas, formatando indícios baseados em deduções e opiniões, é um perigo. Com indícios, se leva a pretensa verdade aonde se queira, no inquérito ou no processo. Por isto é também extremamente danoso à credibilidade da Justiça a existência de inquéritos sem fim, intermináveis, abstratos e cheios de ramificações complexas.
Durante o inquérito, perduram as dúvidas e incertezas da culpa, que não foi judicializada e nem resultou, até então, em condenação transitada em julgado. Os delegados de polícia são os senhores da condução das investigações, e não é que esta esteja em mãos erradas – longe disso. A imensa maioria dos delegados que conheço é gente proba, honesta, competente e sagaz. É que a seriedade do processo penal impõe o confronto de ideias para que se forme a culpa.
No inquérito, só o Estado Acusador fala! Não há dialética processual, e sem a análise das teses das partes é impossível um julgamento justo. Nos inquéritos, a polícia e o Ministério Público são os senhores do bem e do mal, e os fatos investigados ainda não foram escrutinados por aquele que é pago pelo estado para ser imparcial, para não puxar a sardinha para lado nenhum e para ouvir a defesa dos acusados antes de decidir: o juiz de Direito.
Pior ainda é quando a verdade parcial que emerge dos inquéritos, os indícios orientados por conclusões por vezes precipitadas, a afoiteza precoce da acusação grave, são divulgados impiedosamente na mídia em trechos escolhidos a dedo para escandalizar, muitas vezes em investigações que se desenrolam em severo segredo judicial.
O dito pelo não dito
“Porcaria por porcaria, fiquem no SBT.” (Silvio Santos, comunicador brasileiro).
RENATO ZUPO
Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor Universitário, Escritor, Palestrante.