Na coluna de hoje, Murilo e eu, vivos que somos, tratamos precisamente daquilo que nos destrata a todos, enquanto sopramos para afastar as fuligens internas e externas. Sem mais delongas, vamos às crônicas.
por André Pádua
Naquela tarde, o vento corria em lâminas frias e carregava um sufocante cheiro de fumaça. Não era noite cronológica, mas o cinza simulava um breu opressivo e sem estrelas:
- Você tem fogo aí?
- Fogo? Pra quê?
- Pra quê? Bem, não interessa.
- Se não me interessa, também não tenho fogo.
O primeiro olhou meio sem paciência para o segundo, já entendendo que não seria fácil. O segundo, por outro lado, desconfiava das intenções de quem queria mexer com fogo justamente naquela hora, em que o produto da combustão saturava o ambiente, estorvando olhos e narizes alheios.
- Preciso de fogo porque, bem… dá pra fazer muita coisa com fogo, né? Cozinhar, fritar, assar, aquecer, iluminar, soldar, ferver. É pra isso aí que vou precisar.
- Estou vendo tudo. Vai me dizer que você voltou a fumar? O médico já está sabendo disso? E a família?
- Não, não tem nada a ver com fumar, parei e não volto mais. É para outra coisa…
- Mas que coisa?
- Será possível? É pra tudo aquilo que eu acabei de falar, entendeu? Além disso, o fogão de lá de casa está com um problema, é preciso um fósforo, ou um isqueiro, que seja, para acender as bocas. Não sei o que aconteceu que ele não acende sozinho…
- Ah é? Que coisa esses fogões novos... Há quanto tempo ele está assim?
- Os novos não prestam pra nada, estou com esse problema já tem uns quatro ou cinco meses…
- E mesmo depois de todo esse tempo você não providenciou um fósforo sequer para usar em casa?
Convencido de que dali não conseguiria fogo sem dar satisfações, o primeiro deu as costas e saiu praguejando qualquer coisa inidentificável. O outro, diante daquela atitude, só reafirmou a certeza que já possuía desde o início de toda a conversa: o fogo só podia ser para fazer xixi na cama.
por Murilo Caliari
Começo o texto assim:
Hoje meu dia foi repleto de tensão. Ao menos me fez refletir sobre a espiral do tempo, os vales minguantes e as cristas das marés cheias. Piso nos meus pés, arregaço as mangas e esfrego minhas mãos igual uma mosca na mesa da sala. Prego ganchos pra sustentar redes. Desfaço laços com tesouras enferrujadas e sem corte, mascando o fio. Mordendo os dentes, derramando bolhas de spatens, brah-mas ou stellas. E continuo afixando cartazes com minha foto meu no-me, os dizeres procura-se morto ou vivo. Vivo morto morto vivo morto vivo vivo morto. Coçando o nariz. Desperdiçando o olhar, fumaça, lam-pejos, graças. Enrolando pra resolver minha vida. De um lado pro outro, arrastando a ide-ia. Circulando os problemas e reinventando as questões. Caindo, caindo num sono profundo. Num poço, cavando meu canto, construindo umas pontes, escadas rolantes. Endireitando postes elétricos, girando o cimento em betoneiras sujas de terra. Erguendo andaimes e falando da boca pra fora. Enquanto isso, deixo tudo pra depois.
Não me esqueço do dia em que atravessei uma névoa rosa e sai inteiro na realidade. Desde então fixo essas percepções no ar. Eu vejo um céu estranho, uma nuvem de fumaça espessa e diferente dessa névoa da iniciação. A gente caminha na penumbra, o som nos imbrica pro barulho. O fogo treme a paisagem. E eu, uma lesma rastejante num galho, busco traçar um ponto luminoso onde descarto minhas latas e cartas. Pra no fim, o que foi gravado, serem essas palavras de beleza, intenção. Pra que, finalmente, sejamos nós (eu e você) outros pontos e traços nesse desenho mal planejado e perfeitamente arriscado.