ENTRETANTO

Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 31-08-2024 00:44 | 980
Foto: Arquivo

Queimadas
O Ministro Flávio Dino, do STF agora, determinou que a União Federal contingencie esforços e grandes efetivos das forças de segurança para o combate às queimadas amazônicas que estamos enfrentando nesta fase de seca, esturricados com acidentes climáticos. A medida é salutar, mas eu e muita gente se pergunta: por que esta deliberação compete ao STF?

A decisão se dá no bojo de uma Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) proposta pelo Partido dos Trabalhadores, contra a União, por considerá-la desidiosa em confrontar os efeitos devastadores da sequidão e por não combater ações antrópicas – que são forças humanas que degradam ao meio ambiente e a médio prazo o deterioram, causando acidentes climáticos.

É um remédio previsto na Constituição Federal para evitar que se descumpram garantias fundamentais previstas na própria Lei Maior, omissões atribuíveis a entidades públicas ou privadas por quem pode arguir o descumprimento: segundo a legislação, representantes do governo, entidades de classe (sindicatos) e partidos políticos, dentre outros. Ou seja, muita gente pode procurar o STF e reclamar do descumprimento de garantias fundamentais, as mais abstratas possíveis, dentre as quais o direito à liberdade, ao trabalho, ou a um meio ambiente limpo.

Amplitudes constitucionais
Como a Constituição versa sobre assuntos os mais diversos assuntos, e tem capítulos e mais capítulos – inclusive o famoso artigo 5o  - dedicados às garantias e princípios, tudo o que existe sobre a face da terra, ou sobre o território nacional, pode vir a ser questionado através de uma ADPF. E quase toda pessoa jurídica que não seja descaradamente comercial pode fazê-lo, além dos próprios representantes dos entes federados.

Resulta disso que a competência do STF, que é onde a ADPF será julgada, se torna também amplíssima, como nunca o foi em qualquer outro país do mundo. Supremas Cortes de justiça existem para desmantelar conflitos decorrentes de ofensas à Constituição ou sobre sua interpretação à luz de leis inferiores ou ações nela embasadas. A palavra-chave é “conflito”, que vem de uma vontade insatisfeita. Uma pessoa quer uma coisa de outra, que se nega a acatar-lhe a vontade. Nasce daí a pretensão resistida que autoriza ao acionamento da jurisdição, do poder de julgar estatal, através de uma ação judicial respectiva.

Triste é ver isto tudo combalindo ao Supremo Tribunal Federal. Tribunais, aliás, são idealizados para julgarem recursos, ou seja, teses que já foram deslindadas em instâncias inferiores por outros juízes e tribunais. O STF julgando em primeiro lugar, com o que se chama “competência originária”, deveria ser a exceção da exceção, a mosca azul raríssima dentro das idas e vindas processuais e da normalidade jurídica da nação.

Juízes não podem governar
Não digo, tampouco, que se esteja prejudicando ao STF somente porque a ele se encaminham inúmeras demandas desnecessárias, sufocando-o de tramitações que poderiam ser decididas por magistrados inferiores. Não é só o excesso de serviço que me preocupa. O que assusta, a nós juristas, analistas políticos, formadores e deformadores de opinião Brasil afora, é a visibilidade pejorativa que o Supremo atrai por deliberar sobre assuntos os mais ordinários e desnecessários, assim atraindo para a nossa Corte Suprema de Justiça o comando governamental e político da nação.

O erro nasce da nossa Constituição Federal, com matérias amplas e competências inusitadas. Ainda assim não é possível a um regime democrático, em concomitância, admitir a separação republicana dos poderes constituídos e, em paralelo, permitir que juízes governem, substituindo por ação ou omissão aos representantes dos outros poderes, à gente eleita para gerir de fato a nação, escolhida por eleitores através de votos válidos em apurações eleitorais honestas. Em suma, é o que se denomina de fato a “vontade política” do cidadão brasileiro.

Trivial simples
O usual, aquilo que se verifica na normalidade democrática e jurídica dos países ocidentais, é que suas cortes superiores de justiça cuidem de assuntos que sejam: a) decorrentes de recursos de sua competência colegiada; b) decididos em 99% das vezes pelo colegiado, e não monocraticamente por um de seus membros; c) matérias exclusivas afetas à sua análise, que não possam ser deslindadas por instâncias inferiores; d) ofensas a matérias constitucionais específicas que não possam ser solucionadas por outros órgãos julgadores; e) demandas de fato, e não consultas ou reclamações políticas.

Isto não acontece com o “nosso” Supremo, também porque os ritos impõem decisões emergenciais, tutelas de urgência, as antigas “liminares” – por vezes não tão urgentes ou emergenciais assim – que na prática transformam o caráter colegiado do julgamento das ações em decisões monocráticas decididas pelos ministros relatores. Muitas destas decisões urgentes esvaziam a decisão final, de mérito e colegiada, e com isso implodem o republicanismo democrático do funcionamento do STF.

A importância colegiada
Relembremos que o STF deve ser respeitado porque composto por ministros de notável saber jurídico e conduta irrepreensível, dentro e fora dos tribunais, mas também (e principalmente) porque julgam em conjunto, cada um de seus magistrados com seu respectivo voto, em decisões colegiadas. Ou seja, com vários decidindo é mais difícil errar, e no caso do Supremo esta condição é ainda mais essencial, porque acima do STF, para corrigir seus eventuais equívocos, não há mais ninguém – só Deus.

Imagine-se, por exemplo, alguém que seja julgado pelo STF em competência originária, em única e última instância, via de consequência. Este exemplo sempre é bem revisitado aqui. Há uma garantia constitucional bem conhecida: o duplo grau de jurisdição. Através dele, se garante a todo cidadão ou pessoa jurídica que, uma vez condenado ou de qualquer modo prejudicado por uma decisão judicial, possa dela recorrer. É tão intenso o espectro desta garantia que, para muitos juristas, inexistindo o duplo grau de jurisdição, não é possível o exercício da jurisdição pela instância originária, de piso, pelo juízo instrutor. Em português rasteiro: se não se pode recorrer da sentença, ela de nada vale.

Pois bem. Decidida a questão exclusivamente pelo STF, contrária a fulano ou beltrano, a quem este recorreria? Só lhe resta o pai criador, o Altíssimo. A hipótese não é rara, bastando lembrarmo-nos dos casos da Lava Jato e suas ramificações, dentre muitos outros. Neste caso, se suprime do cidadão julgado, do réu, o direito ao recurso, ao duplo grau de jurisdição que é justamente a garantia constitucional indispensável ao exercício da cidadania dentro do devido processo legal.

Monocratismo
O STF padece de um mal, o “monocratismo”. Como se sabe, tribunais via de regra proferem decisões colegiadas, conjuntas, proferidas por diversos ou todos os magistrados que os compõem. Em suma, as decisões são sempre tomadas por mais de um juiz, e assim se evita o erro, a jurisdição tendenciosa ou o ardor partidário ou ideológico deste ou daquele julgador. Assim, se protege ao cidadão, não da composição deste ou daquele tribunal, ou deste ou daquele juiz ou ministro, mas institucionalmente. Se legisla, inclusive a nível constitucional, para o futuro, para as gerações vindouras.

Quando o regimento interno de um tribunal permite no rito de suas demandas a decisão monocrática como a regra em postulados “urgentes”, e é assim com o nosso Supremo Tribunal Federal, desaparece a garantia da colegialidade. Sem contar que muitas destas decisões, como já disse aqui, nada tem de emergenciais. São quase obrigações do rito. É necessário um cuidado enorme quando se profere o que se denomina decisões de “cognição sumária”. Significa que não os magistrados que as decidem não podem ingressar no mérito da ação, que somente pode ser deslindado ao seu final. Ao mesmo tempo, a decisão urgente e monocrática não pode se embasar em nada, no vazio, deve haver alguma fundamentação. O magistrado prolator deverá habitar uma zona grísea e intermediária, aferrando-se a indícios e aos requisitos que permitam concluir pela necessidade da decisão precária, imediata, por vezes irrefletida e sem oitiva da parte contrária, sem instrução e sem colheita de prova. E sem a análise da matéria também pelos outros membros do mesmo tribunal.

Disse que por vezes a decisão da tutela urgente esvazia a decisão de mérito, ao final. E repito. Em muitos casos, decidida a urgência, perde-se a discussão de fundo. Para não dizer que não falei de flores (parodiando Geraldo Vandré), por vezes acontece comigo: certa vez me veio às mãos o pedido urgente de desembaraço de um caminhão abarrotado de produtos perecíveis e apreendido com a carga em um posto fiscal por falta de documentos e comprovantes de tributos recolhidos. Alertado pelo eminente perecimento dos víveres transportados e diante da discrepância evidente entre o valor da carga e o imposto irrisório devido, mandei em tutela de urgência restituir a carga – o que foi feito de pronto. Depois, citado o Estado, defendido o erário, ouvido o Ministério Público, sobrou o quê para julgar ao fim e ao cabo, no mérito? A sentença se esvaziou com a decisão inicial. É o que se teme com o monocratismo nos tribunais, porque é usual que ocorra.

Ordinarização de instâncias
O que acontece com a Suprema Corte Brasileira é que julga o que não deveria julgar – assim, curto e grosso, todo mundo entende. Por estes dias presenciei um voto do Ministro Alexandre de Moraes em uma causa trabalhista (!!!) em que um moto entregador (!!!) pretendia declarar seu vínculo empregatício com o Ifood (!!!).

Pessoal, ver a um ministro do Supremo discorrendo sobre depoimentos de testemunhas, aferrando-se a recibos e comprovantes de compras ou examinando contratos de trabalho, em pleno Século 21, em um país democrático com instituições que funcionam… gente, é surreal. Há que se parar com isso, há que se reformar constituição e a legislação abaixo, para deixar ao Supremo o que cabe ao Supremo. Para dar a César o que é de César. Questões macro, do funcionamento da República, briga de cachorro grande, recursos importantes de matérias relevantes já julgadas. É para isto que serve a Suprema Corte.

Não que o meio ambiente não seja importante, e aqui voltamos ao Ministro Flávio Dino mandando o governo debelar incêndios florestais. A matéria é superimportante, o meio ambiente deve ser protegido. Afinal, direitos de quarta geração, segundo Norberto Bobbio: direitos para as gerações vindouras. Para que nossos netos e bisnetos desfrutem de um ambiente limpo é que temos que lutar hoje. Só que esta matéria poderia ser resolvida por um juiz federal a mando de um procurador da República – este é o ponto. Irônico também que a Arguição, a ADPF, tenha sido proposta pelo PT contra o governo Bolsonaro. Agora, desemboca em sua execução após a decisão final, e a decisão deverá ser cumprida pelo mesmo PT, agora no governo. Tiro pela culatra é isso.

O dito pelo não dito
Não existe nada mais subversivo do que um subdesenvolvido erudito”. (Geraldo Vandré, cantor, compositor, músico brasileiro).

RENATO ZUPO
Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor Universitário, Escritor, Palestrante