ENTRETANTO

Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 07-09-2024 00:07 | 395
Renato Zupo
Renato Zupo Foto: Arquivo

O X da questão
Elon Musk se revoltou contra a decisão do Ministro Alexandre de Moraes, tomada no bojo daqueles inquéritos que todos conhecemos (Fake News, desinformação, milícias digitais, etc…).  Retirou sua plataforma e redes sociais do Brasil, como avisou que o faria, intuindo retaliações do STF, que finalmente vieram: Moraes, diante da impossibilidade de responsabilizar representantes da empresa de Musk – o X, antigo Twitter – baniu suas plataformas e impôs multas pesadas a quaisquer cidadãos que tentem acessá-las do território brasileiro.

Vamos entender, primeiro, o motivo do impasse. Moraes determinou diversas vezes ao Twitter de Musk o cancelamento de perfis e queda de páginas, por ofícios enviados eletronicamente ao megaempresário. A empresa americana segue, no entanto, regras da política econômica do capitalismo em estado bruto. Nos EUA, juízes podem punir, fechar e prender empresários por desobediência ou crime, ou gestão fraudulenta, ou por não pagarem impostos. Ensiná-los ou orientá-los a como gerir suas empresas, não.

Esta liberdade americana é uma ramificação natural do livre arbítrio, ou free will, e é um dogma constitucional naquela grande pátria irmã lá do norte. E quando Musk intuiu a possível existência de resquícios de ideologia política salpicando destas ordens, deu o berro: se trataria, segundo ele, de censura prévia, e a democracia brasileira com isto estaria abalada. E o caso ganhou o Brasil e o mundo com bastante estardalhaço. 

Desdobramentos
Com a retirada das plataformas de Musk do país, em protesto às decisões do Ministro Alexandre de Moraes, e também porque o bilionário temia que seus colaboradores aqui pudessem sofrer qualquer violência estatal, prosseguiram as investigações e o bom ministro determinou que o dono do Twitter indicasse um representante no Brasil para responder às indagações e ordens judiciais, dentro dos inquéritos instaurados. Obviamente, o pedido não foi acatado e, com isto, Moraes deliberou retirar do ar, “derrubar”, como se fala no jargão tecnológico e virtual, a plataforma – e punir a cidadãos brasileiros comuns que se aventurassem em buscar acessá-la pela via digital e servidores VPN, aplicando-lhes multa diária de até R$ 50 mil reais.

A decisão foi monocrática, desferida pelo Ministro Alexandre sozinho, mas no momento desta nossa conversa já estava sendo confirmada pelos demais pares, em uníssono colegiado. Estilo “mexeu com um, mexeu com todos” – como os Mosqueteiros de D´artagnan e Dumas. Como o Twitter é investigado e ganha dinheiro no Brasil, a legislação por aqui impõe que possua em solo nacional uma filial, com representantes, seguindo as leis locais e decisões judiciais domésticas, para que possa funcionar.

É claro que a decisão judicial pode ser alvo de recurso, pode ser discutida e até mesmo criticada – viva a democracia! Mas, enquanto em vigor, deve ser cumprida – em território nacional. Só que as empresas de Musk não estão mais por aqui, eis o “x” jurídico da questão. E no processo penal não se pode responsabilizar a quem dele não seja parte – regrinha básica, Ministro Alexandre. Muito menos naquilo que ainda nem ação penal é, mas por enquanto um simples inquérito – com meandros, segredos, sigilos, tentáculos, e anos de tramitação.

Inquérito sem fim
O problema é justamente este: inquéritos sem fim. Neles, não vale a prova judicializada, somente a indiciária, colhida pela polícia sem direito à ampla defesa e contraditório válidos. Nas investigações, o delegado é o senhor do bem e do mal e, quando o inquérito demora, o impasse entre a culpa e a inocência gera estardalhaço, mortes sociais, buscas e apreensões e até prisões preventivas e provisórias – tudo sem culpa formada. Inúmeras vezes vi inquéritos intermináveis, com tentáculos e ramificações e bastante mídia, redundando no vazio, sem uma condenação, as vezes sem processo, no meio do escândalo prendendo gente e dando prejuízo e quebrando empresas.

Vide a Lava Jato, o Mensalão, a descondenação de Lula da Silva, e outros. Muita gente presa, todo mundo elegível de novo, e por vezes eleito, a verdade virando como e quando vira o jogo da política – e o Judiciário prestando-se a estes ires e vires que não combinam com a segurança jurídica indestrutível que devem possuir os precedentes jurisprudenciais.

Como os inquéritos não se concluem, neste caso das Fake News, desinformação, milícias digitais, fica o Poder Judiciário devassando dados, impondo sigilos e desvelando cirurgicamente informações, desde os idos de 2019, sem a necessária decisão de mérito que o embase a punir. O que na prática é o que está acontecendo com todos os “investigados” – inclusive, e sobretudo e agora, os usuários de redes sociais e plataformas de notícias.

Mentirinhas de internet
O que pouca gente percebe é que, quando falamos de desinformação e Fake News, não estamos falando de crimes graves e infamantes. Estamos falando de mentirinhas de internet, que há para todos os lados e para todos os gostos e ideologias políticas. Acabou aquela aura de respeitabilidade que cercava aos meios de comunicação, e acabou faz tempo, inclusive na grande mídia.

Antigamente, um fato ou notícia saía publicado no jornal, ou aparecia no Jornal Nacional, era verdade e pronto. Na época do meu saudoso pai era assim. Lembro-me de um tio. Discutíamos futebol e eu falava que um determinado craque da seleção brasileira era, para mim, um perna de pau. O tio me interrompeu: “escuta aqui, quem é você? Saiu no repórter que o cara é bom, é craque. Se ele falou, ele que entende, é e pronto”.

Isso acabou, não somente porque as mídias venderam sua alma ao diabo, ou ao santo, mas estão sempre de um lado ou outro, mas também porque, com a tecnologia, o mundo virtual e, principalmente, as redes sociais, todo mundo agora dá notícia e emite opinião o tempo todo. Portanto, o alcance das mentirinhas de internet aumentou bastante, agravando-lhes a repercussão.

Mas não é isto que justifica inquéritos caros, intermináveis, com gente presa ou banida do país simplesmente porque publicou, manifestou ou postou informação que é questionável. O alarido é muito grande para desgraça muito pouca – até porque o chumbo é trocado e todo mundo mente ou aumenta ou inventa na internet por nossos dias.  Curioso, também, que se confundam opiniões pessoais com fatos mentirosos. Fatos são pedaços da História, são acontecimentos. Quando falo que a terra de redonda virou quadrada, estou divulgando um fato falso. Quando digo o que penso sobre a terra quadrada, aí é opinião – indevassável em qualquer democracia.

Mas o pior de tudo é, mesmo, perceber que o discurso uníssono de outrora era sempre permitido e não se falava em desinformação ou em milícias digitais. Quando todo mundo era de esquerda e abominava regime militar, ditadura, torturas, e dava vivas à democracia e à constituição e às instituições da República, tudo se podia dizer e respeitava-se a liberdade de expressão. Bastou que as versões se bifurcassem para que se passasse a tolher a esta liberdade com mecanismos eufemísticos para amenizar uma aparente e deplorável censura prévia ideológica – é este o argumento de Musk e de muito jurista de renome, pelo Brasil e pelo mundo.

O que diz a lei
Para ganhar dinheiro no Brasil, a empresa multinacional tem que ter personalidade jurídica no Brasil, filial e representante local. É o que diz a Lei Civil. Se a empresa sai daqui, no entanto, não está mais obrigada a manter no país colaboradores seus ou filiais abertas – e Musk levou embora daqui o “X”, antigo Twitter. Então, não estaria obrigado a indicar nenhum representante legal, certo?

Errado para alguns, porque a lucratividade de Elon Musk persevera graças aos acessos que ainda se dão às suas plataformas por usuários brasileiros. Por isto é que gente do Direito está discutindo esta matéria. Mas também a outros pontos polêmicos: o juiz do inquérito ou do processo somente pode obrigar, impor multa e sanções, ou mesmo prender e punir, partes envolvidas no respectivo processo. No caso, Moraes não está processando ou investigando aos usuários do Twitter, mas o próprio e seu dono, e não pode punir clientes de uma empresa que porventura esteja irregular ou funcionando contra deliberações judiciais anteriores. A decisão judicial só pode obrigar àquele que seja parte do processo e possa da decisão recorrer, e qualquer sentença ou despacho que puna intuitivamente “erga omnes”, a todos em geral, na verdade se tratará de legislação disfarçada de decisão judicial. É o juiz, que já governava, e que agora está legislando.

Conceito novo
Atenção juristas, que este imbróglio entre Moraes e Musk criou um conceito novo, que merece ser alvo de estudos, debates, palestras e muita discussão acadêmica e técnica saudável e proveitosa. É que, graças aos inquéritos intermináveis e ao seu tratamento desempenhado pelo STF, se criou a denominada “informação proibida” – algo que a muito tempo não se via, se é que já se viu, no Brasil.

Este conceito surgiu por outros motivos e para proteger vítimas de crimes, décadas atrás, quando se criminalizaram as condutas de pedofilia pela via digital e pornografia de vingança. Em ambos os casos, para preservar e proteger a liberdade sexual e a integridade física e mental das vítimas de pornografia, se criminalizou não somente a disseminação e divulgação, mas também o acesso a estes conteúdos. Bastaria, como basta, abrir, descarregar e fazer o download para incidir em crime – conteúdos proibidos em tudo e por tudo portanto. Depois, com os crimes de invasão de base privada de dados inseridos no Código Penal, se ampliou mais um pouco a este conceito, novamente para proteger vítimas, e mais além com a LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados, mais ainda, e pelos mesmos motivos.

Agora, a simples “informação proibida” não existia. Não é que divulgá-la seja crime de Fake News ou produto de milicianos do ódio digital, que este arquétipo já é trabalhado pelo STF com a grande imprensa faz bastante tempo.  Com as multas impostas aos usuários do Twitter, aos teimosos usuários que ainda tentam acesso à plataforma por vias oblíquas, se proibiu a informação – veraz ou não, boa ou ruim, de esquerda ou direita. O conteúdo se tornou (ou voltou a ser) proibido, e não para preservar intimidades ou liberdades de quem quer que seja. Merece bastante discussão, diante desta nova realidade jurídica.

O Dito pelo não dito.
A vida é curta demais para desentendimentos de longo prazo.” (Elon Musk, empreendedor e empresário sul-africano).

RENATO ZUPO - Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor Universitário, Escritor, Palestrante.