• CONVERSA FORA •

Esperando Matilde e Apocalipse 1

por Murilo Caliari e André Pádua
Por: . | Categoria: Do leitor | 04-09-2024 09:41 | 69
Foto: Arquivo

Esperando Matilde
por André Rodrigues Pádua

Havia qualquer coisa de torta na solidão daquela moça, bela, lá pelos trinta, que dividia com ninguém uma mesa para quatro. A ausência de companhia física era temperada pela inquietação de expressões, com os olhos e dedos funcionários buscando, em frequentes cacoetes, a tela do celular. Sequer respiravam os minutos e lá estava ela de novo, sufocando-os com apreensão, tentando espremer-lhes com o smartphone alguma coisa de importante que deveria estar por vir.

Foi quando se aproximou o garçom:

- Com licença senhora, deseja fazer algum pedido?

- Sim. Por favor… Pra mim vai ser um suco de morango sem açúcar e pra Matilde, hmm… - hesitou com seriedade -, pra Matilde uma água sem gás. Só não pode ser muito gelada, mas como tá quente e seco, né, o ideal é que fosse fria.

Mal o garçom deixara a moça novamente na presença dos quatro assentos desocupados, o rapaz da mesa ao lado a ela se dirigiu, interrompendo a inerte agitação da mesa:

- Tem alguma das cadeiras que você não está usando? Será que posso pegar?

- Duas estão ocupadas. Matilde já está chegando com meu namorado. Se quiser, pega a outra.

Mais alguns fugazes minutos de solidão e celular transcorreram até a chegada dos pedidos. Prontamente, a aguar-dante sorveu uma pequena amostra de seu pedido e, olhando para a entrada do local, disse ao garçom:

- Vou precisar ir ao banheiro, mas estou esperando Matilde e meu namorado. Se eles chegarem nesse meio tempo, você pode, por favor, indicar que a mesa é essa?

Assentindo sem nada falar, o garçom passou a imaginar quem seria Matilde e como seria a melhor forma de recebê-la e indicar-lhe o local onde era aguardada. Talvez fosse a sogra daquela moça? Sua mãe? Uma tia ou prima que morassem longe, quem sabe? Na verdade, não devia ser o caso. Ninguém se referiria a um parente assim, por mais remoto que fosse, com esse dis-tanciamento quilométri-co. Certamente, se tratava de algo profissional. É isso, Matilde é uma cliente importante, a chefe daquela mulher solitária que ali estava, e elas devem ter combinado de se reunir aqui para discutir alguma coisa importante do trabalho, talvez para se conhecerem melhor ou, quem sabe, somente descontrair...

Enquanto esperava por sua inatingível Matil-de, não reparou o garçom no rapaz que, recém adentrado no recinto, varria o local com o olhar, acompanhando uma pequena e felpuda Lulu da Pomerânia que, além de um lacinho vermelho na cabeça, ostentava também uma sedenta língua para fora da boca. 

Apocalipse 1
por Murilo Caliari 

de: Lírio
para: Nóia
~°×™<"©" 

No dia tal a trombeta foi tocada. E o amanhã não existiu. A rua se tornou pura neblina, não se via um palmo a frente. A ventania derrubou casas e arvores. E o céu se abriu numa fenda atrapalhada que pintou todo o verde de cinza.

No dia seguinte a tempestade cessou. E um pássaro bicudo e enorme acordou morto na represa do vilarejo mais alto.

Os carros não funcionaram a parte elétrica. Os pedestres não puderam sair de casa por problemas pessoais. Os semáforos e os postes de luz foram os únicos que continuaram funcionando com perfeição.

Ninguém mais sabia o nome de ninguém. E viviam tossindo fuligem. O tempo esticou até arrebentar a esperança.

Nesse período estranho, o gelo era quente como fogo. E o fogo era macio como algodão.

As pessoas desapren-deram a ler. Os caminhos já não eram os mesmos e por isso ninguém voltava depois do primeiro desvio.

No dia tal tocou-se a trombeta e nada mais era diferente do resto.