ENTRETANTO

Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 14-09-2024 02:01 | 355
Foto: Arquivo

Bandidolatria
Tenho muita resistência em assistir filmes e séries em que os heróis (ou anti-heróis) são na verdade os bandidos. E olhem que, para mim, a trilogia cinematográfica do Poderoso Chefão  (The Godfather) está entre os melhores filmes de todos os tempos. É que vejo no meu dia a dia, na minha rotina profissional, o quanto criminosos fazem mal para a população, o quanto dão trabalho e são péssimos exemplos para a juventude. Gastam dinheiro do Estado com a repressão e apuração de crimes, prisões, processos e, por fim, gastam mais grana pública ainda, quando cumprem pena – é quando nós, do Estado, temos que tentar “ressocializá-los”. Afinal, somos pagos para isso, e quem arca com todas essas contas é o povo.

Ou seja, não dá para adorar criminosos na ficção, quando aqueles da vida real matam gente honesta, são onerosos para a sociedade, viciam incautos em drogas ilícitas, desacreditam as instituições, deturpam famílias e aliciam adolescentes. E a dramaturgia e o cinema vêm caprichando em endeusar delinquentes, quando não através de obras de ficção, também romanceando fatos reais: a série Narcos, que relembra o megatraficante Pablo Escobar Gaviria, gerou inúmeros filhotes Netflix afora. No mundo da ficção, Breacking Bad e Peaky Blinders são alguns dos muitos exemplos de obras artísticas de extremo bom gosto e muito bem realizadas, sempre com criminosos simpáticos como protagonistas. Torcemos por eles. Sem contar, é claro, no exemplo emblemático dos criminosos espanhóis de “La Casa de Papel”.

Há muitos outros. São filmes instigantes, roteiros elaborados de forma magistral por escritores experientes e talentosos, diretores e atores do primeiro escalão do cinema mundial. Obras que deleitam e entretém. Mas fica no ar o mal-estar, ao menos para gente que, como eu, conhece o lado negro da força e seus desdobramentos cruéis e danosos: o mundo das artes está demonstrando uma tendência de idolatrar criminosos, uma bandidolatria, que corrompe e contamina a sociedade. OU será que as artes apenas espelham aquilo que já está consolidado na comunidade?

Deolane
Para responder à segunda pergunta, forço-me a me aventurar pelo recente caso da advogada Deolane Bezerra, a “advogada do mal”, ou “advogada do PCC” – como dizem. Presa porque ficou rica, segundo ela como influenciadora e advogada, segundo seus detratores por motivo outro: branqueava dinheiro sujo do narcotráfico. Quando solta, foi ovacionada por populares, consagrada em redes sociais, apupada e aplaudida em diversos subúrbios e periferias. O povo finalmente tomou o lado dos bandidos? Ou isso já existia antes e apenas foi remodelado conforme o impacto das informações instantâneas do mundo de hoje?

Vamos lá. Advogados, sobretudo os criminalistas, geralmente advogam para… criminosos! É o óbvio ululante, para lembrarmos do imortal Nelson Rodrigues. O fato de Deolane, Joaquim ou Manoel advogarem para criminosos faccionados, membros de organizações criminosas, PCC ou PQP, não denigre às suas imagens como profissionais. Afinal, a Constituição Federal garante a defesa técnica por advogados constituídos a todos os cidadãos brasileiros que porventura respondam a processos criminais. Se o réu não puder contratar a um advogado, o juiz lhe nomeará um profissional dativo ou o acusado será encaminhado à Defensoria Pública, nos estados em que as há.

A coisa vai além e fica pior, todavia. Deolane se gaba publicamente de advogar para narcotraficantes, participou de Reality Shows, é influenciadora digital em que se exibe em seu ostracismo e sofisticação milionária. Recentemente, criou um site de apostas bilionário. Indagada há dois anos se de fato advogava para o PCC, respondeu: “advogo só para os bons do PCC. Os que tem dinheiro”.

Sacerdócio e profissão
Com suas declarações e posturas, Deolane adquiriu uma visibilidade perigosa e espalhafatosa, por diversos motivos. Em primeiro lugar, como diria um antigo professor que tive, “a advocacia é ciumenta”. Não dá para conectá-la com outras atividades profissionais, principalmente aquelas limítrofes ao estardalhaço, ao mundo cênico, à exposição visceral no limiar da legalidade – no caso da jogatina.

A advocacia é também um sacerdócio, e não uma profissão, como são sacerdócios outras profissões jurídicas. Para o sacerdócio há que se devotar à imagem e função que se ocupa, exibe e desempenha. Não se advoga somente para se ganhar dinheiro, e muito menos se categorizam clientes pelo seu poder aquisitivo ou pela riqueza, e por mais que seja importante haver um vínculo forte de confiança e respeito entre advogados e seus clientes, estes últimos não podem ser idolatrados pelo tamanho da conta bancária. Em sentido oposto, se chegaria ao absurdo de admitir que clientes pobres são menores, pequenos, ruins ou “menos bons” – é a tese da Dra. Deolane.

O advogado criminalista deve ser como a garça que pisa sobre os despojos e a lama sem chafurdar neles. Sobretudo o criminalista! Advogar para o delinquente não é uma questão de sempre buscar absolvição, mas de procurar o devido processo legal, a diminuição da pena ou sua substituição por alternativa mais branda de punição. A defesa técnica dos réus não pode aplaudir ao comportamento delinquente ou condicionar o patrocínio da causa à fama ou ao dinheiro sujo ou limpo do cliente.

Memórias…
Advoguei com meu pai por cinco anos antes de ingressar na magistratura. Sou juiz criminal há vinte e cinco anos muito bem vividos. Durante meu tempo na advocacia, os melhores clientes eram os pobres, os desvalidos, aqueles que não me pagavam honorários, que já recebi em forma de queijo, frango, ingressos de shows e eventos ou simples apertos de mão.  Uma vez advoguei para um amigo e lhe tomei as dores, me tornei passional e vesti a camisa do cliente. O inimigo dele seria o meu inimigo, doravante! Ouvi do meu pai, velho advogado, uma repreensão: “Cuidado. Você é advogado dele, e não capanga!

Também trabalhei, é claro, para gente rica. E para parentes que me pagavam e não me pagavam. Tem-se que tomar um cuidado enorme no desempenho da advocacia para que a dedicação profissional do advogado não seja proporcional ao valor dos seus honorários. O advogado deve se empenhar ao máximo por todos os clientes, amigos e parentes, ricos e pobres. Lembrem-se que a advocacia é um sacerdócio. O advogado representa, também, a justiça, e deve gerar orgulho social diante do desempenho desta atividade. É um artífice da palavra e operário do Direito, imprescindível para a administração da justiça. Ou seja, não pode causar vergonha ou repúdio social, asco diante de seus ganhos ou suas ações.

Mas isto é oposto do que acontece com Deolane… afinal, ela tem seguidores! Não se sabe se é idolatrada porque é uma baita advogada, ou pela importância de seus clientes endinheirados, ou porque estes clientes pertencem a uma poderosa facção criminosa repleta de fãs improváveis. Em suma, não conheço nenhum pai ou mãe de família standard, religioso, pagador de impostos, honesto e trabalhador que gostaria de ter a jovem advogada como amiga ou parente – mas sua notoriedade angaria simpatia, sua beleza gera apoio, seus vínculos questionáveis com o crime organizado deflagram um estranho efeito: a empatia.

Advogando fora dos autos
Aí chegamos a uma outra esfera de problema. Advogados não podem, claro, ser sequer criticados porque advogam para criminosos. Só quem tem problemas contrata um advogado e o Direito é, principalmente, para proteger párias, endividados, minorias, pessoas postas nas berlindas sociais, sobretudo os criminosos. E advogado não comete crime porque defende criminosos dentro das peculiaridades de seu ofício e dentro dos autos do processo. O problema é quando o profissional do Direito extrapola e foge dos autos para exercer influência externa no patrimônio ou na visibilidade do cliente, ou na produção ou destruição de provas de delitos.

Agora sou obrigado a explicar. O profissional do Direito que atua no seu ofício exerce sua profissão com dignidade e destemor – e está de parabéns por isso. No entanto, o advogado que, valendo-se desta condição, pratica atos criminosos, condutas típicas assim previstas na Lei Penal, este não está exercendo o ofício, o sacerdócio. Está cometendo crimes e se igualando aos delinquentes que porventura defenda.

A advogada Deolane está processada porque é acusada de envolvimento com o dinheiro do tráfico de organização criminosa, não porque defenda os integrantes desta facção. Ela se vê envolvida em investigações relacionadas com lavagem de dinheiro, sonegação de impostos e por integrar o crime faccionado. Some-se a isto sua visibilidade instagramável, e temos um novo fenômeno social e jurídico – e um exemplo do que advogados não devem fazer, nunca.

O fenômeno social
Em uma sociedade saudável, jovens deveriam ter por ídolos a policiais e bombeiros, bons governantes e empreendedores sociais. A bandidolatria faz com que os polos éticos da nação se revertam e por aqui passem a ser incensados os maus, os larápios e desonestos, os corruptos e covardes. Esta estranha anomalia nasce de um discurso pronto de décadas passadas e que, para repudiar ao regime militar que governou o Brasil durante o período político de exceção, também lançou sombras e vitupérios sobre as Forças Armadas, as polícias e os juízes.

Ou seja, os jovens que cresceram no país redemocratizado aprenderam com professores e pais, jornalistas e artistas, que é legal transgredir e que o criminoso é um pobre coitado oprimido pelos mecanismos de segurança pública. De uma hora para outra, passou a ser normal fumar maconha e contrabandear cacarecos na rua, cometer pequenos furtos se tornou justificável – afinal, não deram ao pobre ladrão estudo e oportunidades. Ao mesmo tempo, se tornou retrógrado, antiquado e opressor vestir farda, defender a lei e a ordem e respeitar as instituições. O mau exemplo é que passou a perdurar em nossa sociedade doente.

Mas não é só aqui. Nos Estados Unidos, com a Guerra do Vietnã surgem os movimentos antimilitarismo, as políticas de inclusão social que abominam regras e seus fiscais e as bandeiras que, sob o pretexto de garantir a democracia, suprimem a ordem e subvertem os valores morais da sociedade. É uma pena, mas é neste mundo que vivemos.

O dito pelo não dito.
Povo gosta de gente honesta; quem gosta de bandido é jornalista.” (Reinaldo Azevedo, jornalista e escritor brasileiro).

RENATO ZUPO – Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor, Escritor, Palestrante.