A cadeirada paulistana
A disputa pela prefeitura de São Paulo atrai a atenção de todo o país porque a me-trópole paulistana é a locomotiva que move o Brasil, a única cidade cosmopolita que possuímos e berço da cultura e dos formadores de opinião nacionais. Também é o maior orçamento municipal da América Latina, dinheiro e PIB equivalentes a países do primeiro mundo e o estado de São Paulo, se apartado do resto do país se tornasse nação, seria de primeiro mundo e rica como a Califórnia Americana. E a Califórnia é rica, amigo.
Também por isto, as eleições para prefeito paulistano são acirradas e midiáticas, mais ainda agora com achaques, agressões e vitupérios – e a famosa cadeirada que José Luis Datena deu em Pablo Marçal. Os dois são de circo. O primeiro um jornalista acostumado a estardalhaços e petardos, famoso por ser topetudo, corajoso, valentão. O segundo, um comunicador de massas histriônico, bilionário com marketing digital, que posta tudo o que faz e faz tudo o que posta. E o palco para os dois é a campanha eleitoral onde se atrapalham tanto que vão acabar entregando a prefeitura para Guilherme Boulos.
Datena e Marçal já haviam se provocado em outro debate político. O jovem “coaching” (do quê?) desafiou o veterano jornalista e eles acabaram contidos. Daquela vez. Desta, Pablo Marçal disse que Datena não era homem e tomou do jornalista uma cadeirada. Está dodói no hospital, coitado. Dois histriônicos. Vergonha.
Nutella e raiz
Se Olavo de Carvalho vivo fosse, daria uma surra de vara de marmelo em Pablo Marçal. Rico, inteligente, bem apessoado, conservador, teria tudo para ser uma liderança política caríssima à Direita e benfazeja ao Brasil, que nunca antes precisou tanto de uma democracia pendular, em que há reais antagonismos ideológicos e em que se alternam as lideranças e tendências no poder – de fato.
Marçal tem reais chances de emplacar seu nome nos mais altos patamares da política nacional. Desde que pare de ser um menino bobo, provocador e agressivo, debochado, parecido com um heroizinho de Gibi ou um guru de autoajuda. Homens públicos precisam de serenidade para guiar suas ações e palavras e gerar confiabilidade popular. Desde o início da campanha eleitoral, Marçal vem provocando seus oposi-tores, por vezes com piadas de péssimo gosto. Apedreja a própria Direita que o pariu e debocha da drogadição de Boulos, que é doença e não defeito, se é que existe no caso. Por fim, não se sabe porque desce o sarrafo em José Luís Datena que não tem perfil ideologizante e é um pragmático em busca de resultados. Além disso, está lá atrás nas pequisas de intenção de voto… Bater nele pra quê?
Datena tem idade para ser pai de Pablo Marçal. Sou de uma época em que se respeitavam aos mais velhos. Em determinado conflito, ouvia-se muito, geralmente de pessoas mais experientes e sábias: “Respeite-o, ele poderia ser seu pai”. Era uma época em que não se batiam em homens de óculos, se cedia lugar para senhoras e idosos em assentos de ônibus em que se chamavam as moças solteiras de “senhoritas”. Eram outros tempos, mas mesmo agora alguma ética há que se ter, principalmente na vida pública, e mais principalmente ainda quando se desce o tom para provocar para além da discussão política no meio de um debate que precisa melhorar muito para chegar ao baixo nível.
Legítima defesa
O que quero dizer com isso? Datena deu uma cadeirada em Marçal porque foi ofendido por este. “Você não é homem” – disse o guru de auto ajuda para o desafeto político. Se Datena fosse nordestino, dava morte. Pablo Marçal levou só uma cadeirada e não adianta tentar dramatizar a uma agressão que mereceu. Ele praticamente pediu por ela.
Não defendo respostas agressivas a provocações políticas. Aliás, não defendo nenhuma violência. Ocorre que a lei permite a autodefesa diante de agressão injusta, desde que os meios empregados sejam imediatos e moderados. A agressão não precisa ser física – isto o Código Penal não explicita. Decorre disso que não somos obrigados a ouvir impávidos à ofensas ou desafios, e ninguém está obrigado a fugir de seu agressor!
Todas as constituições do mundo civilizado preconizam o direito à autodefesa, justamente porque não é possível ao Estado estar em todos os lugares ao mesmo tempo, onipresente como um deus, provendo a segurança de todos os cidadãos em concomitância. Decorre disto que as regras de convívio social que organizam o Estado precisam autorizar que os indivíduos possam, em determinadas circunstâncias, cuidar da própria segurança, inclusive para revidar agressões se necessário for.
Além disso, o direito à autopreservação é dos mais antigos do mundo, é um Direito Natural – antecede ao Estado e às constituições. Não é possível conceber o convívio concomitante de pessoas em uma sociedade sem antever a possibilidade de conflitos entre estas mesmas pessoas e, conquanto seja possível solucionar a estas pendências através do Estado, também é necessário conceder aos cidadãos o livre arbítrio para a autodefesa e as ferramentas jurídicas para justificá-la.
Datena foi provocadíssimo em sua honra. Poderia ter fingido que não ouviu a um menino provocador com boa oratória, mas poucos limites éticos. Não era de seu perfil e ele não estava obrigado a se conter. Deu a cadeirada. Muita gente deu a cadeirada junto com ele. Infelizmente, há pessoas que, se não tem respeito por você, tem que ter medo. É uma das lições que mais ensino aos meus filhos.
Hamburgo
Na fase intermediária da Segunda Guerra Mundial Hitler havia sido contido em seus planos expansionistas à leste e oeste – perdera a guerra aérea para a Inglaterra e não conseguira submeter a União Soviética de Stalin à invasão dos seus tanques Panzer e dos exércitos nazistas que sucumbiram ao inverno gelado russo. Ou seja, começava a derrocada alemã. Só que os aliados não conseguiam penetrar na Europa ocupada, com os céus fechados pela Luftwaffe, a força aérea alemã, e as linhas de defesa nazista ao redor da Alemanha e da França ocupada eram praticamente inexpugnáveis.
O bombardeio a alvos militares não adiantavam, o progresso por terra e mar era lento e o Dia D ainda não viera. Os aliados, com Churchill à frente, tiveram que tomar uma difícil decisão: bombardear áreas urbanas, com o objetivo estratégico de minar a popularidade de Hitler junto ao seu povo e diminuir a credibilidade do povo alemão quanto aos objetivos da guerra. Implodir o nazismo, enquanto tentavam destronar o tirano nazista.
Escolheram a cidade de Hamburgo, no nordeste germânico, um importante polo industrial da indústria bélica de Hitler, que não estava preparado para ataques dentro de seu território, principalmente contra civis. Esta era a tática dele e não dos aliados. E o bombardeio bem sucedido matou 40 mil civis alemães “inocentes”. Por fim, os sobreviventes agruparam-se em um bunker abaixo da sede dos correios local. Os estrategistas militares ficaram sabendo e também bombardearam o local, matando impiedosamente aos cidadãos que se protegiam em seu subsolo. Na Alemanha daquela época, todos, mulheres idosos, crianças e adolescentes, além de doentes e inválidos – os homens adultos e saudáveis estavam todos na guerra.
Este capítulo pouco orgulhoso do caminho da vitória aliada na segunda guerra não é muito divulgado – surpreendeu-me ser desvelado sem restrições na excelente série “Vozes da Segunda Guerra”, em cartaz na Netflix.
Sem inocentes
Ou seja, não há inocentes na guerra, um ato estúpido por si só. Só há massa de manobra. Civis não são bombardeados e trucidados, enquanto não o são, simplesmente porque não convém aos homens por detrás dos canhões e bombas e responsáveis pelas ordens de batalha. Se a eles convier, todos os adversários serão tratados impiedosamente como inimigos de guerra.
É o que Israel está fazendo com o Hezzbolah, a Palestina e a Faixa de Gaza. Está fazendo guerra sem hipocrisias, “mea culpa” e sem se preocupar com o politicamente correto – que não importa em um conflito que irá buscar o extermínio completo dos seus inimigos históricos. Com este foco, o primeiro ministro israelense Benjamin Netanyahu ordenou a detonação remota de dispositivos em poder de líderes do Hezzbolah em Beirute, no Líbano, e matou mais de cem civis “inocentes” junto.
Reparem que coloquei por duas vezes “inocentes” entre aspas. E não abro mão delas. Para a arte da guerra (relembre-se do milenar general chinês Tsun Tsú) não há inocentes. Do povo governado pelo inimigo sempre há a impressão de tolerância política, o que já sedimenta um apoio ao menos omisso e tácito. Quem convive com o inimigo e não o combate, é também um adversário a ser destruído. Os xiitas muçulmanos não somente toleram o partido radical islâmico Hezzbolah, como o colocaram no poder e o defendem publicamente – tal qual muito brasileiro faz por aqui. Para Israel, isto é como armar seus adversários milenares.
Guerra preemptiva
É tudo mais da mesma guerra preem-ptiva, como se diz. Atacar primeiro, para não ser atacado. Os líderes do partido terrorista, vivos, não cessariam hostilidades, e se estavam em meio a civis é porque contavam com a conivência destas pessoas, ou ao menos o medo. Povos dignos depõem seus ditadores e o próprio Corão, em bom árabe, conecta os sentidos das palavras “liberdade” e “justiça”, para autorizar ao bom muçulmano não obedecer e, se possível, combater, o governante injusto que não siga as leis do profeta Maomé.
O governo israelense não está nem aí para a opinião pública mundial. Aliás, o judeu não está, como nunca esteve – é um povo combatido desde antes de cristo, sofrido, espoliado e escravizado. Ser mal falado é fichinha, é café pequeno, para um povo que já nasceu com uma adaga na mão, lutando por espaço e para não ser dizimado por seus vizinhos árabes e persas pouco amistosos.
Na guerra, por vezes, são necessárias decisões difíceis, nada poéticas, agressivas e nada edificantes. Sem isto, guerras não são ganhas. Como no combate ao crime. Como na política.
O dito pelo não dito
“Bom de briga é aquele que cai fora” (Adoniram Barbosa).
RENATO ZUPO Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor Universitário, Escritor, Palestrante.