• CONVERSA FORA •

Caso sério | Onde mora o vento?

por Murilo Caliari e André Pádua
Por: . | Categoria: Do leitor | 25-09-2024 12:22 | 48
Foto: Arquivo

Caso sério

por André Rodrigues Pádua

Revoltado com tanta desacontecência por aí, resolvi buscar a sério essa razão do ser que somos.

Achei por bem questionar em primeiro lugar a boca da parede, que prontamente me respondeu que uma coisa dessas só se acha mesmo é na sala da quitanda. Não fazendo ideia de como lá chegar, consultei um moderno giro de campina, desses que já não se fazem mais hoje em dia. Doido doido que só ele, me respondeu que sala de quitanda, bem... é só andar três quarteirões que pronto chegou. “Fácil assim?”, perguntei. “É, mas nem tanto”.

Com um conselho desses nas costas, tanto foi que com muito cuidado efetivamente pronto cheguei. Fazia muito sol grosso na sala da quitanda, aquele quente ferrugem que vai se espalhando pra muito além da onde a vista alcança. Qual não foi minha surpresa quando lá deparei, em trajes mais do que casuais, uma jaca de maçã folgada e seu esposo, o pároco central. Quanto tempo deveria fazer desde a última das vezes? Um ano de hora? Ou seriam meios-dias de três ou quatro décadas? É preciso mastigar melhor uma farinha dessas. De qualquer forma, muito cortesmente me cumprimentaram, dizendo que eram recém-chegados e coisa e tal. Ansiavam saber se era ali mesmo o checkup do porvir.

Eu tinha quase certeza que não era ali, e sim um pouco mais adiante. Para garantir o rigor da informação, conferi a bomba sabão que havia trazido comigo (conselho ao leitor: não recomendo, em hipótese alguma, bater perna sem bomba sabão). Os ponteiros giraram, três, meia, duas, uma vez, até que a confusão tremulante e deliberada indicou que, de fato, o checkup do porvir era um pouco mais pra lá. Assim foi que respondi àqueles meus porosos camaradinhas.

Apressados, assim que receberam a informação, a jaca e o pároco foram se afastando mancantes e sorridentes, mas, antes de passarem do linho do sinal, interrompi-os para perguntar onde ali naquela sala de quitanda se encontrava a razão do ser do que somos. “Pois é por ali”, me respondeu a jaca de maçã com uma careta de dia, apontando diretamente para a junta do miúdo que crescia viçosa naquele ambiente úmido.

Com descura, me aproximei da situação toda e foi nesse momento que, em meio ao restinho de vento do estopim borrado de anteontem, fui surpreendido, com maravilha e deslumbre, pela resposta que tanto procurava, em forma de equação de genésimo grau.

 

Onde mora o vento?

por Murilo Caliari

Nessa roda gigante onde giramos as horas, somos os números e as setas dos ponteiros. Daí a gente aponta direções e vamos conduzidos pelos dedos. Yoshi Oida, ator japonês, certa vez comentou comigo - eu ainda nem era nascido - que quando num palco apontamos para a lua é pra que o olhar da plateia mire o satélite - mesmo que o luar não exista naquele cenário. Ele diz que não se deve fazer com que o público fique olhando pro nosso indicador. Um pouco além, é legal imaginar esses polos onde se dá pra enxergar. É agradável conhecer que nos leve a enxergar além a partir do movimento das pupilas. Alguém especial que nos conduza e guie o olhar apenas pro que há de mais lindo. Nuvens, árvores, magia natural.

Espero que não tenha ficado confuso o raciocínio. É que estou escrevendo apressado no ponto de ônibus. Aperto a caneta numa folha avulsa. Corro meu tempo, trato dos meus perigos comuns numa boa.

Estou aqui, um senhor me pergunta as horas. Ergo meu pulso e finjo existir um relógio na pele, respondo “7:48”. Ele agradece. Assim, um pouco mais longe, volto umas casas no mapa do calendário e chego a 8 dias atrás.

Nessa noite, eu andava pela Avenida do Contorno, e tava a fim de alcançar a clínica psiquiátrica onde trabalho. Dia útil.. Então observo um sujeito em situação de rua se achegando. Trajes puídos, esfarrapados, miséria. Todo sujo de asfalto.

Surge esse cara. Parado. Ele tava quieto diante de um pedaço de papel. Fiquei ao seu lado, perguntei “o que será isso?”. Ele escrevia num caderno. catei logo a folha e li. Perguntei: são exatamente essas palavras? Essas. Numa letra cursiva de fácil apreensão, redigida com caneta bic vermelha, com o título ‘Onde mora o vento?’ podem ser grafadas exatamente como elas são... Daí organizado algo assim..

Há exatamente oito dias, pensei no hoje. Nessa massa estranha onde rodam as circunstâncias. Nesse frio brando onde se faz um lugar.

Daí mudo meu pensamento: Milan Kundera disse que somos observatórios que se esbarram. Luzes que refletem. Lugares que andam no mesmo espaço, partilhando de tempos diferentes. E me tira o peso pensar que não somos ilhas.

Talvez sejamos água, barco, peixes, rede, canoa. Ou essas ondas. Esse pequeno caos que esbarra nas distâncias e se bagunça no jornal.

Eu escrevo isso e estou em Belo Horizonte. Longe longe longe - como dirigiu Jonas Mekas. Sinto muita saudade dos meus pais, da minha família, da cidade, das garças, da lagoinha, dos meus avós, dos meus amigos, do André que escreve aqui, do meu amigo Yuri que anda pela cidade como fiz tempos atrás. Sinto saudade do campo, dos cachorros da rua (os caramelos que me acompanhavam na rodovia), sinto falta dos meus pés pisando meu tênis gasto na calçada. E aí devo colocar um ponto final nesse texto. É a única coisa que posso fazer agora.