ENTRETATNO

Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 28-09-2024 00:11 | 307
Foto: Arquivo

A mania de prender
Há várias espécies de prisão previstas na lei penal brasileira. A mais conhecida é aquela em virtude da culpa formada: quando o cidadão é judicialmente condenado e não há mais recursos possíveis, o que se chama de “trânsito em julgado”. Mas há também a prisão em flagrante, que ocorre quando o delito está ocorrendo ou acabou de ocorrer, e a prisão preventiva, que é decretada para garantir a tranquilidade social ou evitar riscos para o processo ou para a efetivação da justiça.

A prisão preventiva geralmente é decretada pelo juiz porque o crime é muito escandaloso e grave, ou porque há risco de fuga do suspeito, ou porque o réu solto pode intimidar testemunhas  ou destruir provas.  E não nos esqueçamos da prisão temporária, decidida somente quando imprescindível para a investigação policial e em caso de crimes também graves e de intrincada elucidação.

Fora isso, no Brasil e em qualquer outro Estado democrático de Direito, é impossível privar o cidadão de sua liberdade e qualquer prisão criminal decretada fora destes padrões será absurdamente irregular.

Então, pelo que se vê, a prisão é a exceção e a liberdade é a regra, inclusive para aqueles que estão respondendo a processos criminais. Dentro desta realidade, porque juízes brasileiros prendem tanto? 

Justiça tardia
Juízes brasileiros prendem muito porque descobriram que a sociedade viraria um caos completo se a justiça penal somente funcionasse após a culpa formada, depois de vários anos de tramitação de demorados processos criminais. Como o trânsito em julgado é complexo em um sistema processual dotado de recursos intermináveis, os cidadãos ficariam à mercê de criminosos impunes.

E a finalidade principal da punição e do castigo é o exemplo social, é inibir a prática de crimes – mas é claro que isto você não encontra escrito na legislação penal como fundamento para prisões. É algo que se chama de “política criminal” e que já falamos aqui. Os magistrados administram a justiça e com isso pacificam a sociedade – este é o fim maior e último e mais importante do Direito. Se para agir como um tampax social, separando o criminoso das potenciais vítimas, se para dar exemplos de combate à impunidade e alguma segurança aos cidadãos brasileiros, for necessária uma interpretação menos literal e mais prática das leis, os juízes irão fazê-lo.

Na verdade, já estão fazendo. E tudo por conta de processos demorados. O ideal seria aguardar sempre a culpa formada, mas nosso país está anos luz distante da normalidade, principalmente em se tratando de segurança pública e social, e isto há muito tempo. Fazem mais de duzentos anos e desde que éramos colônia portuguesa. 

Encruzilhadas
O processo penal é uma ação judicial que o Estado move contra  um cidadão.  Entendam bem isso. É o governo contra  uma pessoa – e essa pessoa tem garantias jurídicas. Uma delas é não sofrer qualquer prejuízo em virtude de inovações não previstas em Lei.  Meu queridíssimo professor Hermes Guerreiro nos dizia da cátedra da PUC de Belo Horizonte, onde me formei: o Direito Penal liberta. Por incrível que pareça.

O que ele queria dizer com isso? Desde que saibamos quais crimes e sob quais condições podemos ser encarcerados, basta que nos abstenhamos destas práticas e evitemos estas circunstâncias para que se garanta nossa liberdade. Quando há inovações imprevistas e imprevisíveis nas regras do jogo, principalmente entre o primeiro e o segundo tempo da partida, há perigo para a democracia, porque são feridos os direitos individuais pelo Estado punitivo.

Portanto, se causas sociais e de política criminal recomendam que juízes sejam criativos na aplicação da Lei Penal, decretando prisões com maior frequência e com uma amplitude de motivos e causas para além das regras processuais, por outro lado essa necessidade se choca com óbvias garantias constitucionais que todo cidadão possui: a presunção de inocência e o devido processo legal, dentre elas.

É uma encruzilhada, portanto. E não basta se desviar desta bifurcação ao argumento singelo  de que sobre cadeia, processos  criminais e condenações devem se preocupar somente bandidos. Afinal, para o banco dos réus vão eventualmente também pessoas inocentes. Poderíamos ser nós ou nossos filhos e netos os acusados.

Sobre celebridades presas
Crimes, todos podemos praticar. Temos que parar com essa ilusão de que só gente ruim comete delitos. Há condutas, de fato, tão intensamente reprováveis e asquerosas que somente psicopatas ou criminosos profissionais as  praticariam. Mas há condutas também punidas com rigor que podem ser cometidas por pessoas do povo, ditas “normais”, nossos vizinhos e amigos. É para todos, bons e maus, ricos e pobres, que há as garantias processuais da Lei Penal, inclusive, e principalmente, aquela de  não ser preso a não ser nas hipóteses rigorosamente  previstas  em lei.

Se todos podemos cometer delitos, também as  celebridades  podem eventualmente responder  a processos. É o que acontece com  a advogada e influenciadora Deolane Bezerra e com o cantor  sertanejo Gustavo Lima. Entre prisões, acusações e solturas, estão sentindo a fúria do Estado com acusações de vínculos e negócios escusos com o crime organizado.

Talvez nem todos se lembrem, mas não é novidade alguma a vinculação de gente famosa e rica com bandidos e organizações criminosas. O então jogador Adriano Imperador chegou a ser rumoro-samente  processado por frequentar narcotraficantes  em morros de  comunidades cariocas, posando para fotos ao lado de delinquentes  procurados pela  justiça e com a cabeça a prêmio. O cantor Belo foi condenado a oito anos de cadeia por compor organização criminosa, e antes dele o então goleiro santista Edinho, nada menos que o filho do Rei Pelé, passou por semelhante  tormento.

É a bandidolatria, da qual já falamos aqui. Há uma atração doentia de famosos por gente do lado errado da lei, há uma simpatia estranha e equivocada de certos grupos sociais por criminosos, um a complacência e uma empatia por gente ligada ao mundo do crime que é inversamente proporcional à aversão que as forças públicas de segurança e os defensores da lei e da  ordem geram, infelizmente e injustamente,  em uma população de valores cada vez mais invertidos.

Outras manias
Juízes também tem o hábito de utilizar a Lei Penal com extrema contundência quando se encontram no banco dos réus gente do colarinho branco,  pessoas ricas, celebridades. Maldade ou vontade de aparecer na mídia? Não. Magistrados de verdade fogem dos holofotes escandalosos deste mundo de informações instantâneas e entendem que o Poder Judiciário deve ser discreto quanto aos seus protagonistas e visível somente em sua eficácia. 

O raciocínio dos homens de toga que julgam pessoas que vêm de berço de ouro, ou conquistam este ouro ao longo da vida,  é de que esses réus tiveram chance de estudar, mercado de trabalho à disposição do seu talento, e em muitos casos vêm de excelentes famílias. Optaram, portanto, pelo caminho do mal. Tinham alternativas boas. Ou simplesmente não possuem valores morais que acompanhem ou mereçam o seu sucesso e fortuna. Portanto, devem ser castigados com mais ênfase do que bandidos pobres que cresceram em famílias desestruturadas, sem acesso a ensino de qualidade ou a boas opções de emprego  regular.

São piores do que criminosos convencionais, e portanto merecem punição  pior. É um raciocínio válido, mas aqui entra outro interessante dilema: este entendimento tão comum entre magistrados brasileiros vez ou outra colide com o senso de equidade que deve guiar a aplicação da justiça, sempre. Se, para condutas delituosas iguais o castigo deve ser semelhante, não se poderia punir com mais rigor criminosos só porque tem dinheiro, ou fama, ou ambos.

Perguntar não ofende
Gustavo Lima foi preso por participar (supostamente) de esquemas desonestos envolvendo organizações criminosas. Será que seria decretada sua prisão se fosse um cantor em início de carreira sem qualquer projeção artística? Ou será que, justamente por seu sucesso, é que teria sido hipoteticamente cooptado, arregimentado, para o mundo do crime?

E há Deolane Bezerra. Presa e solta, presa e solta. Sem sua carreira de influenciadora, seu dinheiro e sua fama, estaria ela vinculada à uma facção criminosa e, por isto, também processada?

Vamos rasgar o verbo e nos lembrarmos do triste caso do Goleiro Bruno. Se se tratasse do “Pedreiro Bruno”, e se Elisa Samúdio fosse uma empregada doméstica, dificilmente o caso teria sido apurado de maneira tão meticulosa. Ainda que o fosse, duvido muitíssimo que o suspeito desconhecido tivesse sido condenado com tanta veemência e por tantos anos, e apedrejado aqui fora através de um julgamento social que lhe rendeu uma prisão perpétua moral inexpugnável e terrível.

A conclusão a que se chega é que a fama e a fortuna, no Brasil, acarretam uma imensa responsabilidade social. Pessoas bem sucedidas devem sempre dar bons exemplos. Quando não dão, a pancada recebida é sempre mais forte. Coitados dos ricos e famosos que se sentam no banco dos réus.

O dito pelo não dito
Não há problema em celebrar o sucesso, mas é mais importante considerar as lições que podem ser aprendidas com o fracasso”. (Bill Gates, empreendedor e bilionário americano).

RENATO ZUPO Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor Universitário, Escritor, Palestrante