• CONVERSA FORA •

O crime | O inquilino

por Murilo Caliari e André Pádua
Por: . | Categoria: Do leitor | 02-10-2024 08:23 | 39
Foto: Arquivo

O crime

por André Rodrigues Pádua

Acordei para começar um outro dia, um tijolo a mais que vai no muro. Desliguei o despertador, espreguicei, bom dia meu bem, filhinha vamos acordar pra ir pra aula? Enquanto preparava o café e os ovos mexidos, o noticiário era a piora das secas, o acidente na rodovia, as pesquisas de intenção de voto e o último escândalo de lavagem de dinheiro. Tão amargo quanto o café – sem açúcar, por conta das diabetes.

Mas o café pelo menos acende.

Tratei da cachorrinha, escovei os dentes, deixei a menina na escola e fui à academia. Quatro quilos a mais no supino inclinado foi um exagero, não deu pra terminar a última série. Da próxima vez, aumento só dois. Cinco quilômetros na esteira, um banho rápido e lá vou eu para o escritório.

Bom dia, Paula, precisamos conversar mais tarde sobre aquele caso de ontem, isso, do supermercado, esse mesmo. Estava pensando melhor e o procedimento vai ter de ser diferente. Mas não tem nada de mais, entramos em detalhes depois, obrigado. A primeira reunião estava marcada para as nove, mas o cliente atrasou, parece que o moto-queiro raspou no carro dele vindo pra cá, não sei, vai ser dureza esperar essa meia-hora, às dez e meia tem outra reunião com a filial de Fortaleza.

Antes estar lá do que aqui.

No e-mail, nada demais. Um matagal de spam e oportunidades imperdíveis como canetas bic. Mandar tudo pro lixo eletrônico e esvaziar a lixeira chega a ser até prazeroso. O cliente chegou esbaforido, tomou uns quatro copos d’água, bravíssimo, e decidimos sentar para fechar o negócio depois, com a cabeça no lugar. Agradeceu muito, pelo visto pensou que ia pra geladeira.

Na reunião das dez e meia, nada demais. Só o repasse trimestral. Evanil-do chiou que “os números estão dizendo as mesmas coisas que diziam três meses atrás”. Evanildo não se manca, não sabe interpretar resultado, não era nem para ele estar onde está. Maravilhoso trabalhar com gente assim.

Almocei qualquer coisa e aproveitei o horário para ir no barbeiro. Vai passar no zero? Não, hoje eu quero repicar a franja. Ele riu igual um pequi roído.

Perco o cabelo, mas não perco a piada.

De volta no trabalho, sentei com Paula e Matias e expliquei os detalhes do caso do supermercado. Matias informou que metade do dinheiro já estava garantido e seria depositado na semana seguinte. Notícia de se comemorar. Terminei de registrar as operações do dia e fui para casa. Busquei a esposa e a menina e jantamos no melhor japonês da cidade. Mesmo fosca, minha mulher é radiante, pensei. Após alguns goles de vinho, a noite seria boa.

Ao fechar a porta de casa, o interfone tocou. Lá fora, o policial disse:

- Você está preso.

O inquilino

por Murilo Caliari

Todo dia, todo santo dia, o maldito reage e surge e fecha a janela emper-rada. Não sei que horas são. As portas batem com o vento. Não dá pra adivinhar que horas ele sobe as escadas esbarrando na parede e falando alto.

Num dia desses de manhã cruzei seu caminho no corredor. Ele vinha carregando uma caixa de supermercado pisando forte. Mesmo assim sua voz nasceu tão suave e calma ao me perguntar como eu estava. Como eu estava? Não me recordo. Mas lembro que ele trajava sandálias ortopédicas e se perdia na rua. Tanto faz. A janela emperrada acordava o prédio inteiro. Ele chegava em casa e escutava Dança da Solidão, na voz do Paulinho da Viola. Era difícil detes-tá-lo por completo. Restava um mínimo de respeito enquanto eu permanecia acordada esperando ele puxar a janela num guincho estridente. Estava a ponto de entregar-lhe um lubrificante de dobradiças. Mas não. Admito que passei a gostar de tal despropósito. Como se minha obsessão agora fosse me agoniar naquele som engastalhado. Eu precisava daquele cara, subindo as escadas, me alertando pros semáforos da esquina, me colocando a par dos postos de gasolina. Alguém pra me alarmar perto dos extintores. Uma pessoa a me lembrar dos trocados na carteira.

Certo dia tomei uma providência e disquei pelo interfone de casa o número do seu apartamento, 501. Prontamente fui atendida:

-Oi quem é? - diz a voz do mocinho.

-Alô, aqui é a Léa, do 401, do apartamento abaixo do seu. Qual seu nome? - deixei escapar.

-Me chamo Pedro. Você tá precisando de algo?

-Sim, eu encontrei você subindo as escadas esses dias. Eu tava de vestido azul. Você lembra?

-Eu não recordo. Você tá fazendo algo agora? Vamos tomar uma cerveja?

-Vamos, claro. Onde?

-Pode ser aqui.

Então subi no apartamento dele, bebemos cerveja, depois ele me serviu um vinho e cozinhou macarrão com cogumelos paris, alho poró, etc. Ele disse que precisava acordar cedo e eu fui embora.

No dia seguinte ele bate em minha porta e me dá um beijo.

Fico pensando nele. Minha obsessão é uma janela emperrada.