Nunca vi.
Mais de vinte e cinco anos de magistratura, trinta anos criminalista, cinco anos na advocacia criminal. Estive e estou dos dois lados do balcão. Julgando pessoas por crimes, outrora as defendendo ou acusando. Sempre lidando com crimes e criminosos e supostos criminosos. Nunca antes havia visto na minha carreira já longa, já com mais passado do que futuro, autores de crimes contra a honra condenados a penas de reclusão e atrás das grades em efetivo. Muito menos jornalistas presos preventivos por crimes desta natureza.
Nunca dos nunca - como dizia meu saudoso pai, também ele criminalista por toda a vida. Ou seja, caluniar, difamar ou injuriar alguém jamais deu cadeia. Há vários motivos para isso – vamos à eles?
Os crimes contra a honra, decorram de palavras proferidas verbalmente, escritas em impressos ou publicadas em redes sociais, são de ação penal privada. Vale dizer, somente há processo se a vítima, o ofendido, pedir formalmente a instauração da ação penal e a punição do ofensor. Muitas vítimas não perdem tempo com isso. Eu sou um deles. Respondo com meu silêncio, na porrada ou xingando de volta, na maioria das vezes. Mesmo quando a vítima corre atrás do prejuízo e ingressa com a ação privada, que chamamos “queixa crime”, há um prazo fatal, decadencial, de seis escassos meses em que o ofensor terá que ser processado, julgado e condenado – se passar disso, a ação é extinta.
O Brasil é uma imensa pizzaria?
Viram? A Lei Penal é friamente engendrada para que o crime contra a honra não dê em condenação. É como se o legislador penal entendesse que basta o susto do processo, a ameaça do rastro da onça, para intimidar o criminoso, que não precisa ser punido.
Como operador do Direito, como cidadão, acho errado – mas é assim. E não para por aí. Como essa espécie de delito é cometido sem violência física ou grave ameaça contra pessoa, e sua pena mínima é de um ano de detenção, quando há condenação de fato transitada em julgado (o que é raríssimo) a pena sempre é em regime aberto ou semiaberto e é substituída por penas alternativas, restritivas de direito, prestação de serviços comunitários, multas, cestas básicas, etc…
Segundo nossas leis, cadeias não foram feitas para criminosos que agem com a palavra e não com os punhos, facas e armas de fogo. Questão de política criminal. Resolve-se o dano causado à honra alheia através de medidas cíveis de indenização e o bolso do condenado dói – é o remédio mais eficaz para conter a este tipo de delinquente.
Vivências.
Eu não sou diferente e tampouco mais estudado e vivido que inúmeros outros juristas rotineiramente formando opinião em periódicos, blogs e redes sociais e livros. A todos eles deve causar espécie ver que no Brasil, de uma hora para outra e conforme a vítima, criou-se de uma hora para outra a cultura da prisão para autores de crimes contra honra.
O que nunca houve, repito.
Me recordo de um cliente que tive, quando advogado. Rapaz novo, corno largado da esposa, passou a atormentá-la com fofocas, importunava a todos os novos namorados da ex, ofendendo-lhe a honra, falando mal da moça. Justamente processado por três vezes, em uma ação o crime prescreveu entre recursos que interpus, noutro caso houve decadência do direito de queixa da vítima, no terceiro, finalmente, condenado meu cliente a … prestar serviços comunitários por seis meses. Daí sossegou. Era teimoso, covarde maledicente, mas nunca passou perto de uma cadeia.
Também como advogado, conheci um dono de jornal, jornalista por diploma e profissão, de uma comarca do interior mineiro. Cobrava anúncios de jornal de prefeitos de sua região. Se o município não topasse fazer a publicidade, começava a falar mal dos gestores, insinuar corrupção, caluniava em editoriais extensos. Era mais do que crime contra a honra, era uma forma de extorsão, e vitimava vários políticos por atacado. Desta feita advoguei para uma das vítimas. Fomos até Brasília pedindo a condenação do jornalista – e esbarrávamos na tal “liberdade de imprensa” e o sujeito saiu incólume de todos os processos.
Outro jornalista, este do sul de Minas, o conheci já juiz. Teve umas cinco condenações por crimes contra a honra, duas delas comigo. Ao condená-lo, avisei: “o senhor vai acabar preso se continuar assim”. Ele recorria e continuava falando mal de quem bem entendia, enfronhando-se na vida pessoal de seus desafetos, desonrando-os, imputando-lhes condutas imorais e criminosas. Era o seu mantra. Deste acabei por decretar a prisão preventiva – foi a única que vi até o STF de agora. Mesmo assim, a prisão não foi cumprida. O Tribunal de Justiça mineiro de uma canetada mandou soltar. Motivos? Liberdade de imprensa, presunção de inocência, devido processo legal, o crime não era violento, etc… Era assim.
Até o Sarney.
O ex-presidente José Sarney estava no auge como senador e, da tribuna do Senado, uma das várias vezes em que foi defenestrado pela imprensa e em um raro momento seu de ira, conclamou seus pares parlamentares: “Temos que fazer alguma coisa contra as ofensas e acusações falsas com que nos atacam dos jornais. Não temos mais uma Lei de Imprensa para nos proteger!” - eram os idos da década de 2000 e as redes sociais ainda engatinhavam e jornais eram todos de papel. E já se abusava da liberdade de informação para agredir, acusar, caluniar – e tudo era impune. Não acho esta impunidade correta. Já critiquei aqui uma falta de controle da qualidade dos comentários críticos vazados na imprensa e da pessoalidade e da irresponsabilidade daqueles maus profissionais de imprensa que abusam do poder de informar. A Lei de Imprensa, que na prática não existe mesmo, esbarra na liberdade de informação e de manifestação de pensamento e por isso a Constituição Federal, através do STF de outrora, blindou comentários jornalís-ticos e jornalistas de qualquer punição por livremente manifestarem seu pensamento crítico – ainda que ofensivo.
Isto não quer dizer que se defenda a censura prévia. Nunca. O uso da palavra, escrita ou falada, seja por qualquer meio, deve ser franca. O seu abuso pode e deve ser punido na forma da lei e mediante o devido processo legal – só que este abuso nunca deu cadeia na história do País.
Precedentes.
Inobstante casos recentes de blindagem de jornalistas, pelo próprio STF. Caso do gringo Gleen Greenwald, que desnudou contatos telefônicos entre Sérgio Moro e procuradores da Operação Lava Jato através de escutas clandestinas. Tecnicamente, crime de utilização de dados privados e receptação. Para o ministro Gilmar Mendes, o jornalista americano estaria incólume a qualquer responsabilização criminal porque a Lei de Imprensa – que para isto serviu – lhe garantia o privilégio do sigilo da fonte da informação jornalística.
Posteriormente, Greenwaldt passou a publicar vazamento de conversa de assessores do Ministro Alexandre de Moraes, valendo-se deste precedente, da jurisprudência. Ou seja, se era livre como jornalista para denegrir a reputação de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol com informações ilegais e sigilosas, privadas e obtidas sem autorização judicial, também poderia fazê-lo em relação aos membros do gabinete de um ministro da mais alta corte de justiça do país.
Abafaram o caso. Até agora.
Nada é mais como antes.
Por conta desta cultura de leniência e impunidade em relação aos autores de crimes contra a honra é que estranho – eu e todos os juristas brasileiros – as recentes decisões provenientes de tribunais superiores, o STF à frente, mais uma vez com o Ministro Alexandre de Moraes se destacando nisso, que vêm decretando prisões de jornalistas por supostos atos de desinformação, crimes contra a honra, fake news, apologia ao ódio, etc…
Enfim, por conta da manifestação de suas opiniões. Falo em específico de Allan dos Santos e Geraldo Custódio, mas também e em menor monta de Paulo Figueiredo, Rodrigo Constantino, dentre outros que, se não foram presos, foram lacrados, com contas bloqueadas e páginas de redes sociais derrubadas.
Mas fiquemos com aqueles profissionais de imprensa que tiveram, ou tem, sua liberdade tolhida, ou por prisão ou porque, por conta da prisão decretada, tiveram que se exilar em outros países. Ressalto: disse acima que os atos dos jornalistas são “supostos”. Não quis dizer com isso que não cometeram crimes. Seria incoerente blindá-los só porque ofendem para um lado, lutando contra a impunidade de Greenwaldt e outros, que transgridem para o outro lado da ideologia político-partidária.
Disse “supostos” crimes porque não há sentença penal condenatória transitada em julgado contra estes profissionais de imprensa. Então, não se pode afirmar que sejam culpados do que quer que seja – é o que decorre da análise simples dos termos da Constituição Federal. O que causa espécie, estranheza intensa, nestes casos, é que estão pondo na cadeia a jornalistas por crimes de imprensa e contra a honra, sejam ou não meras manifestações de pensamento, quando nunca antes esta prática foi adotada no Brasil – não em tempos de democracia plena e fora das exceções do Getulismo, Regime Militar, Estado Novo, etc...
O STF, agora e com estes precedentes, cria novas dimensões para os crimes contra a honra e para os crimes de imprensa – se antes se via seus autores impunes ou praticamente impunes (o que era ruim), agora se vê seu encarceramento sem culpa formada, embasada em critérios subjetivos de análise de informações divulgadas e que tanto podem conter meras opiniões quanto a distorção de fatos. Nunca crimes violentos, com grave ameaça, hediondos, e por aí vai.
O arcabouço de leis criminais no Brasil fica confuso. Traficantes podem e estão respondendo processos em liberdade, assaltantes idem, quando o ladrão não seja muito reincidente ou o crime não alcance uma sanguinolência digna de aparecer na TV Globo. Jornalistas, por falarem besteira (ou não), por desinformarem (ou não), podem ser presos. Conseguiram vislumbrar lógica nisso tudo?
Eu não. E notem que estamos falando de presos provisórios, sem culpa formada, sem o trânsito em julgado de sentença penal condenatória con-tra os profissionais de imprensa em questão, que se encontram no banco dos réus pela interpretação que dão aos seus escritos – provas subjetivas, indiciárias, perigosas de se crer. Com indícios, disse certa vez um jurista, se vai onde se quer. Se faz do redondo quadrado, do preto, branco.
O Dito pelo não dito.
“Se pudesse decidir se devemos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, eu não vacilaria um instante em preferir o último.” (Thomas Jefferson, estadista americano).
RENATO ZUPO, Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor, Escritor, Palestrante.