por André Rodrigues Pádua
É intuitivo pensar que o tempo que perdemos fica por aí, abandonado, coisa sem dono. Mas o que realmente ocorre é que também para isso a humanidade deu o seu jeito. Imagine só como seria se os tabletes de minutos vãos ficassem por aí, jogados pelas ruas e terrenos baldios? Ou se as toras das mais esquecidas horas não fossem submetidas ao adequado manejo? Nossos horizontes e nossa locomoção certamente ficariam prejudicados.
Pelo bem do andar para frente é que, desde as mais longínquas eras, foram sendo construídos os depósitos subterrâneos de tempo perdido. Sei disso porque tenho estreito contato com um de seus especialistas. Por questões de segurança, é melhor não dizer onde tais depósitos se situam; é provável que a revelação do endereço gere gravíssimos entreveros, com pessoas não medindo esforços, dinheiro e violência para recuperar momentos já idos, sem os cuidados de praxe e as cautelas adequadas com o manejo dos elementos. O contato direto com os fragmentos pode gerar consequências catastróficas (náuseas triangulares, melancolia plástica e torções bucais são apenas as mais brandas delas) para quem não tem o devido preparo.
De fato, usufruir do tempo que já se perdeu em estado puro é arte para poucos, exigindo uma boa dose de estudo, treino, ociosidade, preguiça e, sobretudo, disposição para se ocupar com o que realmente não importa. Por tais razões, nos depósitos, o passado bruto é submetido a um processo de beneficiamento antes de ser devolvido à natureza, em microporções em que vamos sorvendo aos poucos enquanto respiramos, bebemos água e ingerimos os alimentos. Em tal processo, as engrenagens internas do que já foi adquirem um funcionamento menos agressivo, diluindo-se as toxinas passadas na constante correnteza do presente.
Mas o mais curioso de toda essa situação foi o que meu confidente – o mais experiente operador de minutagens partidas do depósito – me revelou. Segundo ele, nunca na História os estoques estiveram tão perto de se esgotar. Há um desencontro na cadeia de processos em que o material bruto tem entrado em maior quantidade do que é possível processar, e o setor de engenharia de acondicionamento secular encontra-se totalmente voltado aos esforços de construção de um novo galpão de armazenamento, com capacidade exponencialmente maior à dos depósitos já existentes.
– E qual o diagnóstico para o aumento desproporcional do tempo perdido? – perguntei, não sem alguma consternação.
– A preocupação generalizada com não perder tempo – lapidou, inesitante.
por Murilo Caliari
Essa carta foi encontrada num celular que comprei na mão de um marginal. Transporto seu conteúdo para essas páginas:
oiê,
eu estou apaixonado e não é por ninguém específico, é pela atmosfera. meu coração bate forte, ele pula do meu pe-ito, ele se esparrama no chão. eu já fui feliz. eu fui um rapaz muito triste. eu me joguei no lixo, quase me destruí muitas vezes. mas minha irmã num dia empolgado me disse “lembre desse dia quando estiver deprimido”; só sei falar de mim, é meu ponto de partida. meu maior vício é de linguagem. depois do cigarro, outros cigarros. café, cerveja e cafuné.
quanto às artes, é meu colete salva vidas, meus anjos da guarda são meus trabalhos que a curiosidade me garantiu. já percebeu que é a curiosidade que leva à investigação? e a investigação gera filhotes? (metalinguando: estou comendo algumas silabas enquanto digito e retorno pra completar as palavras). o pensamento chega mais rápido que o dedo. (clarice lispector disse que as coisas acontecem antes de acontecer e concordo com veemência) enquanto digito eu pronuncio as palavras em voz alta, é meu jeito. dizem não ser bom escrever ouvindo música (pra poder sacar o ritmo da prosa pontuada). me desligo desse conselho, ouço soko e a voz dela me fisga num fio profundo que toca minha alma de adolescente. a gente cria relações fortes com as músicas e eu amo essas cantoras, soko, mitski, blonde redhead (até meio constrangedor dizer que adoro o último cd da billie eilish). também escrevo em silêncio quando em vez, em silêncio não, as teclas batem, a percussão das idéias, as palmas imaginárias. eu sou viciado em ter vícios, vicio fácil em elogio por exemplo. amo amar. minhas amizades, eu sinto, eu sinto muito prazer em pensar de um jeito. em pensar na doação e a troca. é o jeito de pensar que se chega em outro lugar. a escrita possibilita que o caminho seja traçado no mapa do tempo. ela possibilita que sejam estruturadas cidades inteiras, traços de personalidade de personagens que moram dentro do crânio. e o tempo preserva o que temos de melhor, mas também não. sim e não, andando de mãos dadas o tempo inteiro.
iê, eu te olhei de frente. eu vi no fundo dos seus olhos o mundo que você fotografou. (eu gosto de dizer que sou um fotógrafo amador porque não quero me render ao profissionalismo comercial e tiro foto porque necessito). e me alegra ver gente numa busca similar. eu só preciso de uma caneta. eu só preciso de um caderno e um bar, fones de ouvido, eu preciso apenas de um coração amigo que bata em sintonia. o silêncio, o barulho e o calor do contato da fala. eu quero desaparecer nessas palavras. eu quero chegar na sua casa, na sua leitura de mundo, minha voz inventada na sua cabeça.
apesar do nosso universo estar em chamas, dancemos, musgo.
catarro, faz toda a diferença deixarmos que o som entre e vibre na gente. a foto performance é uma dança que você domina de maneira rara. fotografar os outros também é como passos de dança, né? passes de mágica. vou te mandar aqui umas fotos e um video sobre o ren hang.
acho que continuo depois, eu preciso espreguiçar.
enquanto não me levanto da cadeira, digo mais um sim. sim, existe vida além da mesmice, se chama ficção também. e vamos criar, e criando faremos existir uma ponte em que sempre poderemos nos cumprimentar.
lá vão os links:
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uakit, i ching (uakit é um grupo mineiro regido por marco antonio guimarães, ele produz os próprios instrumentos, são como obras de arte, ele faz um som mágico, uma amiga chamada julia baumfeld fez um curta-metragem sobre ele chamado marco, é simples e bonito)
https://www.youtube.com/watch?v=hTN3z9DnTtQ
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dica de filme as férias do monsenhor hullot, jacques tati. jacques tati é meu palhaço preferido, seus enquadra-mentos e sua crítica à moder-nidade sempre serão atuais.
https://www.youtube.com/watch?v=iE3QROGW3Ew
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yellow magic orchestra é uma banda precursora no eletrônico no japão, sua formação contava com o r. sakamoto e o haruomi hosono - este ultimo é dos músicos que mais gosto no mundo.
(This is a VHS released in 1992, it’s Camoflage, Taiso, Computer Games, Multiplies, Castalia, Tong Poo, Behind The Mask, Kimi Ni Mune Kyun, Rocket Factory, Cosmic Surfin’, Light In Darkness)
https://www.youtube.com/watch?v=yYw23h7ekjA
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ren hang é foi um fotografo chinês que tratou da questão da liberdade dos corpos contra o autoritarismo do regime chines, ele se matou recentemente. uso uma câmera minolta automática similar a que ele usa)
https://www.youtube.com/watch?v=FdnZlynWFMs
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conte comigo,
seu amigo
Anderson.
que nossa força reverbere nas trocas.