por André Rodrigues Pádua
Esses dias fui fisgado por um reel de um trecho interessantíssimo de uma entrevista do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto. Ele dizia mais ou menos o seguinte: que a vida inteira havia lido e decorado poemas, inclusive em voz alta, que possuíam um “ritmo liso como uma estrada pavimentada”, ou algo assim. Em suma, textos que possuíam um fluir natural, fácil. Diante disso, sua inspiração e motivação poética seria contrariar esse tipo de escrita, fazendo criações que mais se assemelhassem a estradas irregulares, pedregosas, de ultrapassagem ruidosa. As palavras são minhas, mas o recado era por aí.
Meu primeiro contato mais intenso com o autor foi o livro “Museu de Tudo”, de 1975, que aluguei despretensiosamente na biblioteca da Unesp, num gesto de “pegar pra conhecer melhor”. O título era o único do autor que compunha o acervo da faculdade na época. Até então, só conhecia de Cabral o “Morte e Vida Severina”, que infelizmente virou ração protocolar de ensino médio, que a gente é obrigado a engolir sem saber o porquê e sem tempo pra digerir.
No início de Museu de Tudo há uma belíssima epígrafe, cuja autoria desconheço, e que diz mais ou menos o seguinte: diante da inutilidade de tudo, antes a inutilidade do fazer do que a inutilidade do nada fazer. Novamente, quem está falando sou eu, mas é por aí a mensagem. Ingressando na leitura dos poemas, lembro-me de senti-los desajeitados, sem ritmo, em suma, da leitura ser áspera e muito diferente da dinamicidade de Morte e Vida Severina (que de tão musical acabou na boca do Chico Buarque). Foi estranho e talvez tenha largado a obra pelas metades.
Alguns textos em particular me chamaram bastante atenção, apesar disso. Um deles relacionava enfermidades como o câncer e o enfarto ao ato de embarcar em um ônibus ou carro contra a própria vontade. O outro tratava de Ademir da Guia, grande ídolo da história do Palmeiras - o maior campeão brasileiro, nunca é demais lembrar - que deixo a seguir transcrito pela importância que possui na reflexão que agora desenvolvo: Ademir da Guia/ Ademir impõe com seu jogo/ o ritmo do chumbo (e o peso),/ da lesma, da câmara lenta,/ do homem dentro do pesadelo./ Ritmo líquido se infiltrando/ no adversário, grosso, de dentro,/ impondo-lhe o que ele deseja,/ mandando nele, apodrecendo-o./ Ritmo morno, de andar na areia,/ de água doente de alagados,/ entorpecendo e então atando/ o mais irrequieto adversário.
Curiosamente, como se vê, para João Cabral a beleza do jogo de Ademir era justamente sua aspereza, o arrastamento, sua capacidade de lenta e serenamente desmobilizar o adversário. Aos seus olhos, Ademir usava as pernas para escrever pedregosa e desconfortavelmente. Para o outro time, não restaria nada além do fardo da bola contra - assim como para o leitor de João Cabral fica o desconforto da reflexão tropeçante.
por Murilo Caliari
[11/11 05:37]
Estou longe. Aqui onde me encontro é distante das amizades. Vivo preso dentro do quarto. Cama, frigobar, tv chiada. Peço refeição pelo telefone, tiro ele do gancho na mesa de canto e puxo até o ouvido, ele vem esticando sua fiação espiral. Ele me serve para acionar o serviço do hotel. Eu disco asterisco. Ele toca no hall. Alguém atende e transfere a chamada pra cozinha.
O dono é meu amigo. Prometeu me recepcionar até eu encontrar maneira de vender meu serviço e alugar um quartinho. Como parte do acordo, eu faria a publicidade da sua rede hoteleira.
No final de junho, a companhia abrirá um resort na praia de San Marino e ele está contando com minhas fotos. Não quero decepcioná-lo. Meu trabalho não combina muito com o que ele procura. Fazer o quê? Devo adaptar-me e torcer para ele não associar meu nome à publicidade.
[15/11 08:42]
Faz quase dois dias que não saio do quarto. Está circulando um vírus que deixa as pessoas entubadas e como sou fumante... como sou fumante tenho que descer pra comprar cigarro. O hotel San Marino, o primeiro da rede, fica localizado no centro da cidade. Mais especificamente, a poucos metros do calçadão. Costumo comprar meus cigarros no tradicional Café Antônia. Eles costumam cobrar uma taxa de 1 real se você passa no cartão. Já peço três maços, vamos ver se isso me segura por três dias. Esses artifícios matam a ansiedade causada pela última tragada. Um ciclo de vício me leva a escrever enquanto posso. A única coisa que leio hoje em dia são frascos de shampoo e essas próprias palavras. Essas que venho carregando e me dão dor nas costas. Que passam pelos olhos e por minha voz mental. Essa figura do eu-lírico encarno com gosto. Até chegar no final de mais uma prosa.
[19/11 08:43]
Se a vida fizesse sentido, hoje eu estaria com a Carol. Eu deveria tê-la pedido em casamento enquanto ela estava apaixonada por mim. Mas nada faz sentido de fato. São jogos do acaso que definem onde estamos sentados agora. Infinitas chances de tudo dar errado, seguir o curso num oceano de sorte e revés. Com bifurcações e variáveis.
O que acontece é que a gente se apega no costume e quando isso desaparece, vem o desespero. Eu acordo todo santo dia com medo de serem reais minhas aflições. Quando percebo que são, tento despistar o pensamento. Por isso precisei sair de onde morava. Vim direto ao quarto 301, o qual meu amigo garantiu que eu poderia ficar até arranjar meios de vender meu trabalho.
Saio na rua, fotografo, sigo pessoas e descubro que essas pessoas vão ao encontro de outras. Fico decepcionado. Eu não tenho ninguém. Mas aceito o que vier.