• CONVERSA FORA •

Desossos do ofício

por André Rodrigues Pádua
Por: . | Categoria: Do leitor | 15-01-2025 07:43 | 23
Foto: Arquivo

O pensamento corrente condenou à obviedade a ideia de que não fazer nada é moleza. Nesse mesmo embalo, aprendemos a desdenhar cegamente da vida supostamente fácil daqueles que não se dedicam ao trabalho no sentido funcionário da expressão.

No livro O Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro desmascara a conversinha fiada que pode ter originado esse tipo de moralidade entortada em nossa realidade: tratar-se-ia de pretexto - desonesto, diga-se de passagem - do qual se valeram os colonizadores portugueses com a finalidade de ater espiritualmente os subjugados, indígenas e africanos, aos lavores para os quais se encontravam fisicamente compelidos. Pensando dessa forma, além de lutar contra quem quer que os forçasse ao trabalho, os escravizados teriam de travar a batalha contra a própria consciência - essa que quiçá é o mais cruel de nossos algozes.

No fim das contas, conseguir sem sangrar ficou pior do que não conseguir e o ferro e o fogo dos séculos acabaram por tornar o trabalho engessado um imperativo de pedra. Hoje estamos nessa, entupindo a culpa com remédios: contamos para as paredes sobre as longas horas em que passamos em serviço, postamos em nossas redes sociais quando saímos do trabalho após escurecer e orgulhamo-nos de não parar no domingo ou feriado.

Como se fosse fácil ficar sem fazer nada.

Experimente o leitor passar meia hora ao léu, sem celular, leitura, música, ou qualquer coisa do tipo. Somente trocando vestígios de ideias com o espelho e procurando a sensação de uma folha boiando em mar aberto. Decorridos esses trinta minutos, o cansaço será tão grande que o repouso por algumas horas é mais do que recomendável. Com o tempo, contudo, e o exercício regular da dedicação à observação da cor do vento, a prática fica menos incômoda.

Um mês seguindo essa rotina à risca e, quem sabe, deve até brotar no leitor uma despropositada e incontornável vontade de escrever crônicas.