CRÔNICA DA CIDADE

O médico estagiário

Por: Joel Cintra Borges | Categoria: Cidades | 03-02-2018 22:02 | 2850
Foto: Reprodução

Nem bem tinha recebido o diploma e já estava de malas prontas para o continente africano. Já escolhera até o local: Uganda, país que não é banhado pelo mar e onde o inglês é falado por grande parte da população, uma vez que os dois idiomas oficiais são o suaíli e o inglês, embora haja mais 39 línguas e dialetos!
Não era sua intenção ficar na capital, Kampala, mas em uma cidade pequena, interiorana, onde pudesse ter mais contato com as doenças comuns na África: tuberculose, malária, febre amarela e hanseníase, sem contar a AIDS. Moléstias mais ligadas à pobreza, desnutrição, falta de condições básicas de saneamento e acesso a água potável, além, é claro, de vacinas.
Tinha grandes projetos, não tanto humanitários, mas acadêmicos. Ter oportunidade de estudar essas doenças com profundidade, contando com grande número de pacientes. Ficaria três anos na África e depois voltaria especialista respeitado, com amplas perspectivas numa grande clínica, ou até como docente em uma faculdade.
Tirou passaporte, visto de três anos, tomou as vacinas de praxe e voou para a terra desconhecida, às margens dos Grandes Lagos e banhada também pelo Rio Nilo. País relativamente pequeno, com pouco mais de 27 milhões de habitantes. 
Na bagagem levava muitos livros, além de microscópio e outros instrumentos, os quais tencionava usar com muito empenho naqueles 36 meses que tinha pela frente.
Mas, planejar é uma coisa e fazer é outra! E o nosso amigo médico não mostrou tanta força de vontade assim. Preferiu envolver-se com mulheres e bebida, fazendo o mínimo possível como médico. Os livros mofaram nas malas e o microscópio foi usado uma vez ou duas. Acabou encostado para um lado.
E ele esqueceu de seus planos de tornar-se especialista em doenças tropicais. Ou fingiu esquecer-se, por comodidade. Até que o tempo acabou e ele recebeu o aviso de que seu visto havia expirado e tinha que deixar o país. 
Foi aquele choque! E agora, como voltar sem a bagagem do conhecimento que se propusera a adquirir? Teria que começar de novo, procurar escolas, hospitais...
Nós somos esse médico, nós viemos para o planeta Terra cheios de planos de crescimento intelectual e moral. "Vou fazer isso e aquilo! Serei desprendido, abnegado, estudioso, trabalhador, caridoso. Posso não virar santo, mas vou chegar bem perto!"
E o que acontece? Em contato com a vida, surge o desejo do conforto, a sede pelos prazeres de todo tipo, a ambição, a vaidade, o gosto pelo poder... E a gente vai abafando a consciência e tocando o barco, sem tanta preocupação com crescimento, evolução... Até que nosso visto também expira!