ELY VIEITEZ LISBOA

Minhas Deusas

Por: Ely VIeitez Lisboa | Categoria: Cidades | 25-03-2018 13:03 | 2168
Foto: Reprodução

Freud detectou a complexidade da psique humana. O que ele não sabia é que os animais também são muito complexos e diferentes, não só na aparência, cor, raça, mas no comportamento.
Lara e Juna são irmãs da mesma ninhada. Dois sonhos cor de chocolate, labradoras de olhos verdes. Comprei-as em Altinópolis, de um
criador que só trabalha com cães nobres, de raça pura, com pedigreee.  Os pais e avós de minhas princesas já ganharam prêmios. 
Desde sua vinda, no carro, com dois meses, as diferenças foram evidentes. Juna, posteriormente com o cognome de Madre Juna de Calcutá, porque era santa, veio tranquila, dormindo como um anjo, entregue ao seu destino. Lara, elétrica, tensa, cheirou o ambiente, examinou o local. Na hora da compra, tudo já se evidenciou. Juna aproximou-se de mim, puxou o cordão de meu tênis, como se dissesse: Eu quero você! Lara desconfiou logo que meu marido estava em dúvida, entre ela e a terceira irmãzinha. Não titubeou: mordeu-lhe a barriga com ousadia. Ele achou graça e escolheu-a. 
Com quatro anos tronaram-se adultas, de acordo com as leis caninas.  As diferenças eram cada vez maiores. Lara latia muito, principalmente à noitinha, até a hora de dormir. Reclamava por tudo, exigia, marcava presença quando se sentia ignorada, era lépida e brincalhona, deblaterava, ou às vezes ficava com uns ares de melancolia, com um olhar meditativo. Seu instinto se acirrava dia a dia. Sempre teve um andar cauteloso e felino. Caçadora, entre suas presas houve dois ou três pássaros, gambás e lagartixas. 
Juna, a santa, sempre foi silenciosa e dócil, obediente. Comovia com seu terno olhar de anjo. Era, no entanto, refém de um Pecado Capital: a gula. A irmã, ao contrário, comia só para subsistir e definitivamente achava comer ração, um acinte. Olhava-me reclamando. Será que eu não entendia sua predileção por comida caseira?
As duas nunca comeram carne. Só sentiram o cheiro atraente, apetitoso. Ficaram então como Baleia, a inesquecível personagem de Vida Secas, sonhando com tal ambrosia.
Elas sempre foram vivas, inteligentes, captando tudo que lhes dizia.
Passávamos horas juntas, as três sentadas muito próximas, experimentando uma paz excelsa. Os cães são terapêuticos, mágicos?
Sei que há algo que a vida toda as deixou meio infelizes. Apesar de apaixonadas pelo belo labrador dourado, do vizinho, permaneceram virgens. Amor platônico. Como arriscar ter duas ninhadas de mais de dez ou mais filhotes?
Elas foram meus tesouros, presentes régios. Sensíveis como eram, se algum dia falassem comigo, não estranharia. Era só uma questão de tempo.
Escrevi este texto acima repleto de lembranças. A vida mudou, Juna já se foi para ficar perto de São Francisco. Lara é hoje uma senhora, gorda, que adora dormir... Está completamente cega, mas ainda gosta de ficar ao meu lado e pedir carinho com a patinha direita. Minhas Deusas enriqueceram minha vida.
(*) Ely Vieitez Lisboa é escritora.
E-mail: elyvieitez@uol.com.br