Monteiro Lobato é o pai da literatura infanto-juvenil brasileira. Até hoje, a obra do criador da rebelde Emília alimenta a imaginação de crianças e adolescentes.
Não vamos falar dos erros históricos e ideológicos, quando a ditadura e a Igreja condenaram a literatura de Lobato, considerando-a perniciosa. O enfoque é outro. Focalizemos o excelente contista adulto, de Urupês e Negrinha, obras-primas publicadas, respectivamente, em 1918 e 1920.
Seria interessante saber por que Urupês apareceu só uma vez na lista de livros obrigatórios para vestibulandos. Lobato, nesse livro, narra de maneira rara, doze tragédias sempre atuais, atraentes, densas e fortes, com vocabulário riquíssimo. Todo adolescente iria se deliciar. Não há como não ser seduzido pelo conto "A Vingança da Peroba", quando a Natureza não se defende, mas se vinga, no sentido literal. O conto "Mata-pau" é a metáfora do ser humano que se alimenta do outro e o destrói, versão moderna do axioma latino "O homem é o lobo do homem". "Boca-torta" é narrativa de horror explícito, de monstruosidade e necrofilia, assim como o terrível "O bugio moqueado" (in "Negrinha¨), história perversa em que o marido obriga a mulher infiel a comer o amante, denotativa-mente.
Crítica ferina, personagens feitas com pinceladas magistrais, os contos de Lobato deveriam ser usados como iscas saborosas para atrair adolescentes e jovens que não gostam de ler. Também no livro "Negrinha" está o conto "Era no Paraíso", uma paródia inteligentíssima da criação do homem. Jeová explica a Gabriel como surgiu o Ho-mo Sapiens. Um casal de chimpanzés dormitava em uma árvore e um forte pé de vento derruba o macho. A malícia da serpente coloca ao pé da embaúva uma grande laje, "na qual se chocou o crânio do infeliz desarvorado". A partir da Queda, o macaco mudou e a fêmea copiou sua maneira de ser, seguindo-o. Foi-se a perfeição. Nosso herói vacilava entre duas bananas, patetava na escolha e por vezes perdeu a ambas. Para pular de um ramo a outro, agora calculava não só a distância como a força do salto. Começa a ter curiosidade por macacas alheias. Invejou as aves que dormiam no ninho fofo e os animais que tinham boas tocas.
Um dia, surrupiou uma delas. Variava, tresvariava, malucava, inventava. "Evoluiu", criou armas, progrediu com a tecnologia. O Soberano Senhor, curioso, permitiu que nosso antepassado primevo continuasse. A fêmea não o compreendia, mas admirava-o, imitava-o, obedecia- lhe.
O conto é rico de ironias, neologismos, muito atual. Exemplo de criatividade é também a versão de Emília da fábula A Cigarra e a Formiga, de La Fontaine. Vale a pena sempre reler Monteiro Lobato.
(*) Ely Vieitez Lisboa é escritora
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